30 dezembro 2005

Um 2006…




Pleno de novos destinos, surpreendentes e desafiantes!!!

(Só falta mesmo é encontrar a bilheteira…)

28 dezembro 2005

Talvez me tenha reconciliado…


Quando José Saramago ganhou o Nobel em 1998, senti uma grande satisfação. Apreciador da sua obra que tinha lido praticamente na íntegra, a leitura recente do “Todos os nomes” proporcionara-me um enorme prazer.

O que se seguiu, fez-me perder rapidamente essa satisfação. Desde o partido a tentar tomar posse do prémio até aos conservadores católicos ressuscitando a polémica do “Evangelho”, polémica essa típica de quem nunca o terá lido. Saramago reage de forma infeliz à pressão dos holofotes mediáticos. De repente, toda a gente começa a falar e a comentar “Saramago”, mesmo aqueles que não tinham passado das três primeiras páginas do “Memorial do Convento”. Profundamente irritante.

Seguiu-se “A Caverna” que achei fraco e algo repetido sem nova graça. O “Homem Duplicado” prometia muito mas, enquanto em “Todos os nomes”, Saramago nos deslumbra a partir de um enredo singelo, neste o enredo promete mas o desenvolvimento desilude.

Estava na dúvida sobre o futuro a dar a este autor na estante das minhas preferências quando foi editado o “Ensaio sobre a lucidez”. A forma como ele chegou foi suficiente para desanimar qualquer um. Proliferação de comentários e de declarações infelizes de quem sabe e de quem não sabe.

Decidi não o ler. Corria o risco de contaminar a análise de uma obra literária com tanta a poeira que à volta dela esvoaça. Esperava mais tarde conseguir desligar a sua qualidade intrínseca daquela ruideira que em nada dignifica a Literatura.

Agora arrisquei “As Intermitências da Morte” e acho que Saramago regressou. Tive o cuidado de não ouvir nem ler previamente nenhum comentário nem opinião, nem sequer do autor. Não será o melhor livro dele, na minha opinião, mas gostei. Duas curiosidades. Uma, a enorme diferença de ritmo e de estilo narrativo que divide claramente livro em duas partes. A segunda, quando eu pensava que desta vez não teríamos uma mulher jovem atraída irresistivelmente por um homem maduro, Saramago dá a volta e seduz nem mais nem menos do que a própria morte. É obra!!!

26 dezembro 2005

Efeméride

O texto abaixo foi escrito pouco depois do 26 de Dezembro de 2004 e publicado como “Carta ao Director” no jornal "Público" de 6 de Janeiro de 2005. Revisto à distância, penso que não terá andado muito longe da realidade….

26 de Dezembro de 2005

Nessa data será evocada a efeméride sobre o maremoto de 2004. Iremos rever algumas das imagens que hoje nos passam e repetem à exaustão.

Algumas zonas estarão reconstruídas, talvez melhor ou talvez caoticamente, como estavam antes do acidente. Alguns habitantes dos países pobres terão migrado internamente. Estarão como estavam em 25 de Dezembro de 2004, e continuaram, uma boa parte da população da Índia, Sri Lanka e Indonésia, sem o mínimo de condições sociais e com infra-estruturas inexistentes ou degradadas.

Alguma ajuda humanitária continuará lá, abnegadamente, como está noutras partes do mundo, mas agora sem o privilégio dos focos das televisões e dos directos sem conteúdo.

Estarão turistas em “resorts”, implantes com todas as comodidades, alguns a escassa distância dos miseráveis que continuarão com dificuldade em obter água potável. Os mesmos turistas que, em Pukhet, foram gozar a praia, depois da catástrofe, quando o mar ainda tinha muitos corpos para devolver. Os mesmos turistas que festejaram a passagem de ano, alheados dos riscos para a saúde pública dos largos milhares de corpos por enterrar.

Os embaixadores de Portugal no Mundo continuarão entretidos com os seus croquetes e esperando que nada importante ocorra que possa solicitar o seu trabalho e justificar o seu estatuto.

A Europa continuará a exportar os seus excedentes agrícolas, como o açúcar, que são subsidiados para serem produzidos em excesso e depois escoados para países do terceiro mundo, em pseudo-ajuda, a preços ridículos, inviabilizando a produção local e tornando esses países dependentes desta caridade.

Provavelmente nalgum canto do Mundo terá ocorrido outro “Darfur” com algumas dezenas de milhares de mortos perante simples palavras de circunstância.

A língua portuguesa terá ficado enriquecida com outra palavra para maremoto, derivada do japonês, e enxertada por aqueles para quem importar palavras é “in”.

24 dezembro 2005

Charlot, Património Mundial

No dia 25 de Dezembro de 2005 passarão 28 anos sobre a morte do Grande Chaplin. Eu acho que Charlot deveria ser considerado património cultural da humanidade. Em qualquer época, em qualquer lugar deste mundo, aquele vagabundo é entendido e adorado. Sobretudo por quem tiver olhos e coração abertos, como as crianças. O pobre frágil e ágil, vencendo o bruto poderoso e tosco e, ainda por cima, ganhando no fim a menina bonita, é receita certa. Talvez por isso alguns intelectuais o achem sentimentalão e lamechas. Isso só pode, no entanto, vir de quem está distraído ou nauseado consigo próprio.

Uma leitura atenta dos filmes e, já agora, da sua biografia, permite ver muito mais. Charlot tem fome. Charlot luta pela comida, luta pela sobrevivência, obstinadamente. A comida tem uma presença quase obsessiva na sua obra. No topo está, naturalmente, a fabulosa cena da bota na “Quimera do Ouro.”

A mesma “Quimera do Ouro” produzida pela sua United Artists, frágil e ágil contra todo o poder das grandes produtoras apostadas em o ver falhar. E um dos filmes mais belos que eu já vi.

De novo a partir da “Quimera”, a dimensão coreográfica da deslumbrante dança dos pãezinhos. Mas não só. O movimento de Charlot em cena é muitas vezes pura e simplesmente um bailado.

Para os distraídos, Charles Chaplin, já sem Charlot, sem máscara, deixa em dois dos filmes finais uma nota explicativa da sua obra: “Luzes da Ribalta” e “Um Rei em Nova Iorque”. No primeiro está lá a dança explícita, a fugaz fronteira entre o sorriso e o esgar e a tenacidade da sobrevivência sem renuncia da beleza. No segundo, da mesma forma como o vagabundo batia no bruto sem piedade, Chaplin bate com elegância mas sem piedade numa América hipócrita e oca que o tinha envolvido na caça às bruxas por “actividades anti-americanas”.

Quem ainda o achar sentimentalão e lamechas, só pode estar mesmo muito distraído. Charlot é, de facto, com ou sem formalismo, património cultural da humanidade.

21 dezembro 2005

Ainda a AFA

Na sequência do texto anterior sobre a "American Family Association" e do comentário da Olivina, acrescento…

Embora a sociedade americana funcione de uma forma exagerada e quase caricatural em muitos aspectos, este tom de cruzada não é específico dos EUA. Considero ser uma enorme falta de coerência estes movimentos “católicos” de “pressão” preocuparem-se com estas coisas e ao mesmo tempo verem de forma resignada problemas muitíssimo mais graves face aos princípios da sua doutrina, sem falar sequer dos básicos direitos do homem. Daí o zoom inverso.

Sobre os crucifixos nas escolas portugueses existe alguma analogia. As argumentações a favor da sua manutenção por gente inteligente, além de roçarem a desonestidade intelectual, são uma tentativa de impor ao universo a marca da maioria. E, para avaliar isto, nada como calçar o sapato do “outro”. Que diriam eles se, integrados numa comunidade maioritariamente islâmica, mas que quisessem sentir também como sua, vivessem permanente debaixo de um crescente colocado em cada sala de aula, em cada cama de hospital, em cada repartição pública, jurassem em tribunal sob o Corão e etc…? Achariam isso perfeitamente “normal” e um legítimo direito da maioria? Vai uma aposta???

19 dezembro 2005

As grandes causas das famílias americanas

AFA - American Family Association. Com poucos dias de intervalo vi esta poderosa associação conservadora americana envolvida em dois casos curiosos.

A AFA achou grave que a Ford fizesse publicidade em revistas “gays” e pressionou a construtora de automóveis, ameaçando lançar uma acção de boicote contra os seus modelos. A Ford foi sensível à pressão e suspendeu a publicidade. De seguida os “gays” pressionaram e, em duas semanas, a Ford deu o dito por não dito e retomou esses anúncios.
Resultado: AFA – 0; Gays - 1.

A AFA não gosta da tendência verificada nos EUA de, em vez de se desejar um cristão “Feliz Natal”, se falar somente em laicas “Festas Felizes”. E lançou um boicote contra a cadeia Target, que tem 1400 lojas, por ela não falar explicitamente em Natal. 700 000 pessoas protestaram e a Target cedeu. A AFA tem mais marcas e cadeias na mira.
Resultado: AFA – 1; Laicos - 0

Duas sugestões
Eu acho que tudo se resolveria se, por exemplo, a Ford segmentasse o mercado: Ford para cristãos, Volvo para gays, Jaguar para judeus, Mazda para islâmicos e etc. O retalho também poderia criar redes de lojas especializadas à sombra de crucifixos, crescentes, estrelas de David, olho maçónico e por aí fora.

Duas constatações.
Algo me diz que esta civilização está a andar para trás,,,
Sem dúvida que o pressionar está muito na moda. Pressão é, por definição, uma força distribuída numa superfície. Entre a origem da força e o alvo existe um meio que é utilizado para transmitir e distribuir o efeito.

E um corolário.
São estes os problemas importantes e agudos da nossa sociedade e que justificam a mobilização maciça de boas vontades. Face a eles, os milhões de subnutridos do planeta, crianças sem escola, doentes sem assistência médica devida e outras misérias humanas são uma simples fatalidade e parte daqueles insondáveis desígnios supremos contra os quais somos todos impotentes.
E dos crucifixos esquecidos nas escolas portuguesas, nem falamos.

16 dezembro 2005

Alvorada



E um dia avalia-se

Os meus traços que se afundam, o meu tamanho ridículo, o meu tempo aprazado…

E diz-se que não!

Que por detrás do que parece correr, está uma dimensão profunda, que ensaia o infinito da nossa expectativa de infância.

O nosso tempo aprazado age, reage, encerra, aquilo que no fim pouco importa.

A grandeza está em como tu respondes ao meu sorriso de criança...

14 dezembro 2005

As liturgias musicais



Como já disse aí atrás, para mim a música anglo-saxónica “morreu” nos anos 70. Fui revisitá-la. E, sem grande rigor de representatividade, fiz uma lista com os seguintes temas:

Genesis – The Supper’s Ready (Foxtrot)
Pink Floyd – Shine on You Crazy Diamond (Wish you were here)
Vand der Graaf Generator – Wondering (World record)
Camel – Ice (I Can See Your House from Here)
King Crimson –The Court of the Crimson King (idem)
Jethro Tull – Aqualung (idem)

São temas que duram mais dos que os 3 minutos da praxe. Alguns muito mais mesmo. Com uma construção musical mais ou menos complexa em que alterna um registo intimista com teclas ondulantes a encher todo o espaço e batidas empolgantes acompanhadas por sintetizadores ziguezagueantes.

Temas em que, para lá de uma melodia mais ou menos bem arranjada, têm algo quase de litúrgico. De celebração da expressão musical.

Se alguém achar que foi feito algo de parecido dos anos 80 para cá e que arrisque ser colocado ao lado, em particular, da “sinfonia” “Supper’s ready”… avise…

12 dezembro 2005

“Grandes para quê?”

Esta pergunta foi utilizada por um fabricante de automóveis para promover um utilitário, procurando evidenciar que ele servia para a mesma função do que os outros maiores. Em parte, tinham razão. Infelizmente os estrategas da Ford e da General Motors nos EUA não viram o anúncio e acharam que se deveriam concentrar nos automóveis grandes, entregando o mercado dos “pequenos”, à escala deles, aos japoneses. Entretanto, os japoneses atacaram também os grandes e, com o aumento do preço do petróleo, os clientes descobriram que não necessitavam mesmo de automóveis grandes, criando um grave problema a esses construtores.

Falando nos preços altos do petróleo e na escassez dos recursos naturais, podemos falar também no efeito de estufa e nas quotas de CO2, das quais se começam a fazer os primeiros balanços, confrontar tudo isto com a obsessão económica pelo crescimento e questionar: crescer para quê?

Crescer! As empresas devem crescer para não serem engolidas pelos concorrentes; as economias dos países devem crescer para não perderem terreno. Mas … para que necessitamos de ter 10 cv mais nos nossos automóveis, cada ano que passa? Para que necessitamos de aumentar ainda mais a produção de produtos agrícolas, já excedentários e, ao mesmo tempo, sem conseguirmos acabar estruturalmente com a fome no mundo?

Razoabilidade na utilização dos recursos do planeta: Será razoável que, devido ao crescimento e ao embaratecimento dos voos aéreos, haja ingleses que voem para Girona, unicamente para comprar bebidas alcoólicas e regressem carregados de garrafas, de tal forma que a poupança “paga” a viagem? Ou que se exportem maçãs do Brasil em carga aérea, chegando aos supermercados europeus mais “baratas” do que as do vizinho que as deixa cair da árvore?

W. Churchill dizia que a guerra era um assunto demasiado sério para ser deixado exclusivamente ao cuidado dos militares. Eu acrescentaria que a economia é um assunto demasiado sério para ser deixado exclusivamente ao cuidado dos economistas.

Existe uma dinâmica de evolução intrínseca da natureza humana. Crescer sim mas: “Grandes em quê?”.

05 dezembro 2005

Será ???

Alguns anos atrás, este texto era impresso em posters com fundo bonito e fixado nas paredes. Acho que hoje estará muito fora de moda. Hoje, este perfil não será o de um Homem mas sim o de um grande totó, não?

SE

Se tu podes impor a calma, quando aqueles
Que estão ao pé de ti a perdem, censurando
A tua teimosia nobre de a manter.

Se sabes guardar sem ruga e sem cansaço.
Privar com Reis continuando simples,
E na calúnia não recorres à infâmia
Para com arma igual e em fúria responder,
- Mas não aparentar bondade em demasia
Nem presumir de sábio ou pretender
Manifestar excesso de ousadia, -

Se o sonho, não fizer de ti um escravo
E a luz do pensamento não andar
Contigo no domínio do exagerado,

Se encaras o triunfo ou a derrota
Serenamente, firme, e reforçado
Na coragem que é necessário ter
Para ver a verdade atraiçoada,
Caluniada, espezinhada, e ainda
Os nossos ideais por terra. — Mas erguê-los
De novo em mais profundos alicerces
E proclamar com alma essa Verdade!,

Se perdes tudo quanto amealhaste
E voltas ao princípio sem um ai,
Um lamento, uma lágrima, e sorrindo
Te debruças sobre o coração
Unindo outras reservas à Vontade
Que quer continuar, e prosseguindo
Chegar ao infinito da razão,

Se a multidão te ouvir entusiasmada
E a virtude ficar no seu lugar,

Se amigos e inimigos não conseguem
Ofender-te, e se quantos te procuram
Para estar com o teu esforço não contarem
Uns mais do que outros, — olha-os por igual!,

Se podes preencher esse minuto
Com sessenta segundos de existência
No caminho da vida percorrido
Embora essa existência seja dura
À força das tormentas que a consomem,

Bendita a tua essência, a tua origem
- O Mundo será teu,
E tu serás um Homem!

RUDYARD KIPLING
(Trad. de António Botto)


E lembrei-me de acrescentar uma parte da carta final de Nicolau Stavrougine do grandioso “Os Possessos” de Fedor Dostoivesky que me ficou gravada:

“Mas também aqui não pude odiar ninguém”

Tem que ser crime

“O Fiel Jardineiro” fez-me ir buscar ao meu baú este texto que escrevi o ano passado, a propósito dos 10 anos do genocídio do Ruanda. Sempre actual, sempre actual….

Há 10 anos tive o “privilégio” de seguir o genocídio do Ruanda em simultâneo nos meios de comunicação belgas e franceses. Foi a primeira vez que vi, com tamanha evidência, como um simples telejornal pode ser um instrumento de manipulação e de deformação da opinião pública.

A cobertura era pouco objectiva, dominada, por um lado, pela impotência e complexo dos belgas, antiga potência colonial, e, por outro, pela confusão e apreensão dos franceses relativamente a uma investida da influência anglófona naquela zona sensível.

É relativamente claro que na origem do drama estiveram interesses externos que atiraram gasolina para as brasas das tensões étnicas, provocando uma explosão muito maior do que a esperada.

Foi publicado recentemente um relatório da “Global Witness” sobre a situação em três países petrolíferos africanos, Congo, Angola e Guiné Equatorial. Segundo esta ONG, e só a título de exemplo, um em quatro dólares das receitas de petróleo é desviado pelo governo angolano, representando cerca de 1,7 biliões de dólares por ano, e, ao mesmo tempo, uma em cada quatro crianças angolanas morre antes dos 5 anos.

Além dos mortos e da miséria no presente, a falta de infra-estruturas sociais e de educação comprometem o futuro desenvolvimento desses países por uns bons anos.

Quase em simultâneo a “Transparency International” vem contar que somente 3 figuras somadas, Mohaemmed Suharto na Indonésia, Ferdinando Marcos nas Filipinas e Mobutu Sese Seko no Zaire terão desviado um total de 50 biliões de dólares, o equivalente a um ano inteiro de ajuda ocidental a todos os países subdesenvolvidos do mundo.

No tempo em que existiam colónias e colonizadores, estes, apesar de tudo, tinham a responsabilidade moral de organizar um mínimo de infra-estrutura social, sistema de educação e de assistência. Actualmente os antigos colonizadores continuam, em geral, a usufruir das matérias-primas das antigas colónias, subornando a elite dirigente. Como os países são “independentes”, desresponsabilizam-se totalmente da gestão que os “governos soberanos” fazem. É aparentemente cómodo mas é criminoso.

Numa altura em que se avança no conceito e na aplicação de uma Justiça Internacional, estas situações têm que ser consideradas crime. Os oligarcas locais são responsáveis mas, no hemisfério norte, existem cúmplices activos. Que, inclusive, não hesitam em instigar e patrocinar mudanças violentas de regime quando está em causa a perda da sua “influência”. O que se passou no Ruanda em 1994 foi, aparentemente, uma mudança que saiu fora do controle e que ultrapassou os padrões “habituais” das mudanças naquela zona do globo. Veja-se a história das últimas décadas na África Ocidental que está recheada de mudanças violentas sob o perfume do petróleo.

Tem que ser crime e o seu julgamento não pode ficar limitado aos autores materiais. O primeiro passo para haver alguma justiça é desmascarar a hipocrisia com que o mundo ocidental olha para esta situação de calamidade humanitária.

04 dezembro 2005

A Onu e as renas

Três criadores de renas na Lapónia, queixaram-se de que o corte de árvores na sua região pela Metsahallitus, empresa pública florestal finlandesa, era ilegal. Um tribunal decretou que o corte deveria ser suspenso provisoriamente e que os criadores teriam que apresentar uma garantia bancária de 1,05 Milhões de Euros, para poderem compensar as perdas da Metsahalitus, no caso de a decisão final do tribunal não lhes dar razão.

Na impossibilidade de apresentarem tal garantia, os criadores de renas apelaram à ONU, alegando discriminação perante a justiça. O comité dos direitos humanos da ONU solicitou a suspensão dos cortes e a Metsahalitus concordou. Esta história passa-se na Finlândia que por acaso, ou sem acaso, está no topo de muitos índices “civilizacionais”.

Não deixa, no entanto, de ser curioso comparar esta eficácia da ONU na defesa dos direitos humanos com, e é só um exemplo, o Darfur em que centenas de milhares de pessoas foram chacinadas perante pouco mais do que palavras de circunstância.

Também é curioso comparar este caso das renas com outro passado na mesma altura. Uma série de explosões numa fábrica petroquímica em Jilin, no nordeste da China, provocou uma mancha de 80 km de benzeno tóxico no rio Songhua. A jusante, na cidade de Harbin de 3,1 milhões de pessoas, a água foi cortada por quatro dias, esperando que a mancha passasse. Na mesma região, pouco tempo depois, mais uma exposição numa mina mata 166 pessoas, o que já parece uma rotina na China.

Ainda falta muito para que muitos seres humanos neste mundo tenham, na prática, os mesmos direitos que as renas finlandesas.

02 dezembro 2005

O Fiel Jardineiro



Finalmente! Um filme que me encheu as medidas!

Antes de mais, é um filme que não tem perfil “bossa de dromedário” como irritantemente costumam ter os filmes americanos.

Passo a explicar. Nesses filmes o “herói” começa lá bem no fundo das costas do bicho. Depois, com esforço e sorte lá consegue subir para a bossa. Quando se instala lá em cima, algo de imprevisto acontece e perde o equilíbrio. Ficamos na expectativa se voltará lá para a parte de trás do bicho, onde cheira mal … Mas não, felizmente não. A queda é para a frente, para o pescoço do animal. Depois, com tenacidade, lá se consegue içar para a cabeça e o final chega com o herói aí pendurado, dominando o mundo.

Experimentem ver/rever alguns filmes à luz deste perfil e digam lá se a maior parte deles não segue este esquema de “bossa de dromedário”. Nem sequer se arriscam a tentar o “perfil camelo”… duas bossas poderiam confundir os espectadores e engasga-los com as suas pipocas.

Segundo se dizia em 2000, a ideia para o livro de John Le Carré, que dá o argumento ao filme, da falta de ética e, no limite, da agressividade da indústria farmacêutica, surgiu-lhe ao tomar conhecimento do nosso caso Alfredo Pequito / Bayer.

Não sei se o filme ficará para a história. Mas achei-o belíssimo e incisivo. Com uma elegante e fundamentada acusação à brutal hipocrisia dos ex-colonizadores.

De ficar no final parado e arrasado por aquela África com tanto de deslumbrante quanto de miserável.

01 dezembro 2005

Quem pode criticar?

Depois das várias considerações e contra-considerações em textos anteriores do Glosa Crua sobre a autoridade das minhas críticas, sintetizei este texto, que foi publicado no “Público” de 28/11/2005 como “Carta ao Director”. Será que fica mais claro? Se calhar não…


Estamos a assistir a um período de mudança e de tentativa de mudança muito significativo. Não é objectivo do texto analisar a justeza, a oportunidade ou a forma como essas mudanças estão a ser realizadas, mas sim como são discutidas publicamente. Se escolhermos, como exemplos representativos, a justiça, a saúde e o ensino, assistimos a muita contestação dos visados pelas mudanças e, também, a muita contracontestação da restante "opinião pública".Vemos ainda argumentos de que a contracontestação não é credível porque, como diz o ditado, "quem está fora racha lenha".

Eu, em parte, acho que têm razão. Somos um país muito bem dotado de gente especialista em resolver os problemas dos outros e que opina sobre tudo e todos. Um caso sintomático e ridículo é a chuva de palpites para o futuro do(s) aeroporto(s) de Lisboa. Não nos faltam especialistas em planeamento de infra-estruturas aeroportuárias!

Entendo que um cidadão comum não estará habilitado a dar sugestões concretas sem conhecimento profundo de causa. Agora, o que pode e deve é exigir resultados. Exagerando, se eu for operado para extrair um quisto e, por erro, me amputarem um dedo, eu não vou querer saber porque aconteceu, nem tenho de ser eu a sugerir ao hospital o que deve/devia ter feito para que isso não acontecesse. Há gente paga para isso e a quem eu pago directa ou indirectamente.

Um cidadão comum também pode e deve criticar atitudes. E uma atitude profundamente errada nestes movimentos de contestação é a postura corporativa e de defesa sindicalista em bloco. Se os médicos, professores, magistrados e etc. não querem, e com razão, ouvir dizer que o problema reside principalmente na sua classe, então que deixem de defender a classe como se fossem todos os iguais. Separem o trigo do joio. Enquanto não o fizerem, não terão credibilidade na opinião pública.

Outro interveniente fundamental neste jogo é a comunicação social. A ausência de isenção e rigor em geral, e em particular neste campo sensível e determinante onde está em jogo a revisão da nossa infra-estrutura social, é irresponsabilidade grave.

29 novembro 2005

Ó subalimentados do sonho....

Acho que as próximas presidencias vão ser muito interessantes. Começando por situar a questão, o Presidente da República em Portugal não é uma figura executiva mas sim representativa e referencial. A sua acção só será verdadeiramente importante no caso de um novo Santana Looes. E espero bem que, quanto a esta possibilidade, nós e o conselho nacional do PSD, já estejamos suficientemente vacinados.

Cavaco Silva provavelmente ganhará no campeonato da credibilidade. Agora, será que conseguirá ocupar esse lugar referencial, ultrapassando o cinzentismo do cidadão sério, técnico e amorfo. Terá cultura suficiente para isso? Veremos... Porvavelmente será o fim do mito.

Mário Soares irá perder. E provavelmente, à imagem do que já vimos na infeliz candidatura à Presidência do parlamento Europeu, perderá também a face. O seu tempo já passou e vamos lá a ver quando se conhecerão finalmente os detalhes desse tempo. A sua aparente bonomínia tem tido uma correspondente bondade da comunicação social inexplicável. Estarão à espera para uma crucificação póstuma como a de F. Miterrand? De qualquer forma, é bem provável que seja o fim de outro mito.

Manuel Alegre irá ter um resultado surpreendente. Sobretudo se não entrar em registos do tipo "sobrevivente do Maio de 68" como vimos aquando da discussão da co-incineração para Souselas há uns anos. Bem ou mal, Jorge Sampaio deixou desenhado o perfil do Presidente da República Portuguesa. E Manuel Alegre é o candidato que mais próximo está desse prefil. A sua elegância da palavra e a sua marginalidade, caitvarão muitos eleitores. Um poeta pode não ser um bom Presidente mas umas palavras bem ditas podem ser devastadoras. E cito Natália Correia, também da política e da poesia, se bem que doutra bancada: "Ó subalimentados do sonho, a poesia á para comer". E, se calhar, estaremos mesmo a precisar de comer algo mais para lá do pão...

Em resumo, creio que os Portugueses irão prefeir um presidente esfinge a um presidente poeta e, sobretudo, a um presidente cheio de amigos.

24 novembro 2005

Concorde ...




No dia 24/10/2005 cumpriram-se 2 anos sobre o último voo comercial do Concorde. E eu ainda não me esqueci dele...

O Concorde largou para os céus quando tínhamos 10 anos e um mundo por descobrir. Nas suas capacidades, na sua estética pura e na sua inovação tecnológica, o Concorde era um dos símbolos desse futuro que ali estava. Mais do que imaginar se ele seria ou não o avião do futuro, era um avião futurista que existia e que encantava.

Assim, seguimos atentos o voo inaugural, deslumbrados por aquele perfil esbelto. Alguém disse em tempos que um avião para voar bem tinha que ser belo. O Concorde só podia ser um avião fabuloso de pilotar.

Mais tarde entendi que se actualmente existem aviões europeus nos céus do mundo, isso deve-se em muito ao desafio colocado pelo avião comercial supersónico. As dificuldades do projecto forçaram os europeus a uma associação onde estava a génese da Airbus. Se isso não tivesse ocorrido, provavelmente que hoje não haveria indústria aeronáutica na Europa (acho que existe muito mais “Europa” na Airbus do que na maior parte dos gabinetes de Bruxelas ....).

Hoje o Concorde é peça de museu. O avião que há 30 anos era um avião do futuro, é passado.

Não será caso único nem especialmente dramático. No entanto quando vemos agora aquelas linhas, os anos não lhe pesam. Continua a ser “do futuro”. Daquele futuro que existe na mente de quem o sonha, de quem o desafia e de quem se apaixona pelas criações belas.

E é com alguma comoção que digo: O Concorde é uma daquelas máquinas fantásticas de ficção que teve o privilégio supremo de se ter tornado realidade.


*fotografia extraída do site da Air France

22 novembro 2005

E ainda sobre mudar a justiça

Soube que o meu texto sobre a necessidade das mudanças na justiça, publicado como Carta ao Director do Jornal Público de 3/11, foi discutido numa aula de um curso de direito.

Pelos ecos que me chegaram, a mensagem do professor foi:
“É normal quando as pessoas não estão dentro dos assuntos criticarem sem conhecimento de causa”. “Só se pode falar com autoridade quando se conhece a fundo o tema” e, pelos vistos, da justiça só conhece quem está lá dentro. Conclusão: o texto deve ser ignorado.

Ora bem, eu não conheço, nem quero conhecer, como funciona a Justiça. Não apontei causas nem sugeri remédios. Não sei, nem quero saber, se o problema está no ministro da Justiça ou no porteiro do tribunal. Limitei-me a constatar como cidadão que há ineficiências graves. E que, como em tudo, o primeiro passo para mudar o que está mal, é reconhecer que está mal e que pode melhorar. Encolher os ombros e resignar, não é aceitável. Mas, ao que parece, vozes de burro não chegam ao céu….

19 novembro 2005

Prece




Senhor, livrai-nos do mal. Dizem os crentes que inventaram algo que nos possa livrar de nós.

Senhora, perdoai-me de mim. Do teu ventre inacabado em que claro me impeças de renascer.

Senhor, de ti nada espero. Em ti recuso entregar a outra vida que depois de criança deveria empenhar.

Senhora, o teu sorriso meu suplício, o teu corpo refeita forma, o teu partir pelo meu estar, relicário de enganos, de todos os sonhos recomeçar.

Por mim, menino bolorento. Reincarno a criança que não fui, a loucura que vem atrás.

Senhor, seja em quente, seja em frio, por acção ou por omissão, ela é senhora do meu fim.

A boa vida sabe melhor

Acho perfeitamente normal que os alunos não gostem das aulas de substituição. Recordo-me muito bem da ansiedade com que esperavamos pelo “segundo toque” para confirmar o “feriado” e de quão bem sabia ter um “furo” inesperado.

Que os professores não gostem parece-me já um pouco mais questionável. Provavelmente saberá melhor ficar sem nada fazer do que trabalhar com os alunos. Mas... será esse o critério determinante? Será que a função do professor é fazer o “mínimo” e a mais não é obrigado? Tema para mui larga discussão, sem dúvida ...

Agora, o que me parece absolutamente inaceitável é os professores questionarem a utilidade desse tempo. Não vale a pena recordar os problemas de insucesso escolar gravíssimos que temos e, como corolário, o facto de uma boa parte dos alunos não chegarem a dominar dois pilares básicos do ensino como a Língua Portuguesa e a Matemática. Como é possível, neste contexto, desperdiçar este tempo adicional???

Exigirá coordenação e comunicação. Envolvendo os vários professores da turma, o professor que falta, quando possível, e os professores do grupo para rever alguma matéria ou esclarecer dúvidas. Se tal não chegar, exigirá imaginação. Em qualquer caso, o que não poderá nunca faltar é a vontade.

Em resumo, a boa vida sabe bem, mas a construção de algo exige esforço, vontade e seriedade. Argumentar que as aulas de substiuição não servem para nada, pura e simplesmente não é sério.

16 novembro 2005

Contos Proibidos

Num país em que o passado dos políticos é tão escrutinado que até se descobre o escândalo de uma “sisazita” que não foi paga há uma dúzia de anos, é assustador o silêncio de ontem e de hoje sobre este livro de Rui Mateus de 1996: “Contos Proíbidos – Memórias de um PS Desconhecido”.

Obviamente que é um livro a ler com prudência. Foi escrito por alguém ressabiado, abandonado e atirado pela janela fora pelos seus companheiros de estrada.

No entanto, tem demasiadas referências factuais para poder ser rejeitado em bloco. E o que Rui Mateus escreve é arrasador para Mário Soares e para uma certa forma de ser “profissional da política”. Neste momento em que Mário Soares reaparece e se apresenta como providencial salvador da pátria, seria muito interessante que a nossa comumicação social, tão ávida de “escândalos”, como o da famosa sisa de Miguel Cadilhe, pegasse no documento, o trouxesse a público e ajudasse os portugueses a entender quem é e quem foi esta personalidade. Quais as suas motivações e o fundo das suas acções. Em resumo, que ajudassse a acabar com este mito terceiro-mundista.

15 novembro 2005

Política de prioridades para a justiça

Quando ouvi que as prioridades da justiça passariam a ser definidas pelo Governo, deu-me um sobressalto.

No plano dos princípios, não há razões para este sobressalto. A justiça, como "tudo", tem e terá sempre recursos finitos. É boa norma, antes de reclamar sempre mais recursos, garantir que se utilizam bem os que existem. Essa boa gestão inclui, naturalmente, ter prioridades. É lógico que, em democracia, seja um governo sufragado pelo voto popular a implementar a "política" em todas as vertentes.

Mas um dos problemas muito graves que temos, e bastante impune, é o financiamento ilegal dos partidos. "Quem cabritos vende e cabras não tem, dalgum lado lhes vem." Parece difícil acreditar que tudo o que os partidos recebem seja fruto de dádivas altruístas ou idealistas. Estes financiamentos obscuros chegam certamente às cúpulas e não serão só o pequeno saco azul da autarquia perdida no mapa... Qual será a prioridade dada a este crime no novo cenário proposto?

Se calhar, o fenómeno não é assim tão importante em dimensão material. No entanto, pelo que arrasta a montante e a jusante, torna-se um verdadeiro cancro do sistema democrático. Por vários aspectos. Porque distorce muitas actividades económicas e sociais, porque delapida a "coisa pública" e porque cria uma cultura de valores podres, entrave a um desenvolvimento são. Mas pior ainda. Porque transmite ao comum dos cidadãos a impressão de que os seus representantes democráticos não são pessoas de bem. E isto é muito, muito, grave.

Por isto, eu fico inquieto quanto ao cenário de serem "os governos saídos dos partidos" a definir as prioridades para a justiça. Porque não os reconheço como suficientemente isentos. Querem fazer o favor de me convencer do contrário?

11 novembro 2005

Crónica de uma fractura 2

Mais grave do que o problema actual, que já de si é bastante grave, serão as cicatrizes que ficarão quando e como acabar. Os xenófobos terão mais razões para serem xenófobos e arrogantes. Os imigrantes, todos, sentir-se-ão ainda mais desintegrados e olhados com desprezo. E posso garantir que é muito duro viver num meio racista. Obviamente isto não desculpa esta insurreição. Mas a França, agora injustamente a “ferro e fogo”, não terá responsabilidades no “ferro e fogo” que se verifica nalguns países africanos donde fugiram alguns destes imigrantes problemáticos? Pensemos só no petróleo e em tudo o que se passa à sombra dele!

Aqueles “inteligentes” que identificaram logo de início o terrorismo do Al-Qaeda com todo o Islão, e declararam estarmos no limiar de um confronto de civilizações, dirão agora que tinham razão. Fica só por esclarecer se quem chegou primeiro foi a galinha ou o ovo.

Existe claramente uma inversão de ciclo económico e social na Europa. A “vida” vai piorar... Muitos não resistirão a apontar o dedo aos diferentes. Existem condições para alimentar o crescimento galopante do populismo. Receio bem que tempos sombrios se aproximem

10 novembro 2005

Crónica de uma fractura 1

Ainda é cedo para entender tudo o que se passa em França mas algumas notas podem ser alinhadas.

O terrorismo “islâmico”. Pela lógica, a França seria um dos últimos países alvos na Europa. Em parte pela sua postura de desafio face aos EUA, a França sempre foi muito “cúmplice” dos países árabes. Khomeini regressou ao Irão num avião da Air France. A França vendeu um reactor nuclear a Saddam Hussein (Instalação que os israelitas se encarregaram de arrasar rapidamente sem se preocuparem com a autorização do conselho de segurança da ONU). Estes são apenas alguns exemplos para dizer que a França é bastante “amiga” do mundo árabe.

A questão social. Poucos países na Europa terão um sistema social tão generoso como o francês. Há cerca de 2 meses estive em Limoges. Uma pequena cidade do sudoeste, em tempos famosa pela porcelana aí produzida. O maior empregador é o hospital, o segundo a autarquia. Existia em curso um programa oficial de sensibilizar as empresas para recrutarem 1000 jovens. Se as empresas não correspondessem, seriam admitidos pelo hospital. Pano de fundo: próximas eleições presidenciais.

Nas últimas presidenciais passou à segunda volta, assustadoramente, um tal senhor Le Pen, sob um registo xenófobo e agitando a bandeira da insegurança. Nicolas Sarkozy apresenta-se como sensível a essas preocupações, raiando, por vezes, o populismo. Aliás, a política francesa tem tido como assunto prioritário qual o candidato da direita às presidenciais de 2007. Entre o “popular” Sarkozy e o “fidalgo” Villepin. Se “Sarko” cair, é a factura exposta e o caminho aberto para um Le Pen qualquer.


Continua...

08 novembro 2005

E já não sonham mais...

Eu sei bem que, rua de Belleville,
Nada é feito para mim
Mas estou numa bela cidade
Já é qualquer coisa
Tão longe dos meus antílopes
Eu caminho baixo
Caminhar numa cidade da Europa
Já é qualquer coisa

E sonho
Que Sudão, meu país, de súbito se ergue
Sonhar, já é qualquer coisa

Há um saco de plástico verde
No extremo do meu braço
No meu saco verde há ar
Já é qualquer coisa
Quando danço ao caminhar
Neste “djelaba”
Faço sorrir os transeuntes
Já é qualquer coisa

E sonho
Que Sudão, meu país, de súbito se ergue
Sonhar, já é qualquer coisa

Por querer a bela música
Sudão, meu Sudão
Por um ar democrático
Partem-te os dentes
Por querer a palavra falada
Sudão, meu Sudão
O da palavra trocada
Partem-te os dentes

Estou sentado rua de Belleville
No meio da multidão
E o tempo hemofílico
Corre

E sonho
Que Sudão, meu país, de súbito se ergue
Sonhar, já é qualquer coisa


Alain Souchon
Canção "C’est déjà ça"
Álbum "C'est déjà ça"
1993

em tradução livre...

07 novembro 2005

E vão quinze...



Com “O Jardim da Delícias”, completei a leitura de 15 livros daquele que considero um dos mais interessantes escritores portugueses da actualidade. Refiro-me a João Aguiar que, na minha opinião, tem tido uma projecção bastante inferior à merecida pela sua vasta e interessante obra.

Para quem não o conhece, não recomendo começar por este. Talvez dentro dos romances históricos “A Voz dos Deuses”, dentro da melhor ironia “Diálogo das Compensadas” ou, no fantástico, “O Homem sem Nome”.

Este “Jardim das Delícias” desiludiu-me um pouco. Espero que não seja sinónimo de fim da veia criativa, mas antes uma pequena fase menos boa.

Apesar de motivações e protagonistas diferentes, não seja de ser, no mínimo, curioso, nos dias de hoje, ver a descrição duma Europa em insurreição por inépcia e arrogância dos políticos.

05 novembro 2005

Ou mudam ou têm que ser mudados

O sorriso feliz e descontraído de Fátima Felgueiras é repugnante para os portugueses que acreditam que o seu país pode ser sério.

Talvez a diferença entre o "caso Felgueiras" e outros mais seja, apenas, a de que este conhecemo-lo melhor. Talvez haja argumentos técnicos irrepreensíveis para justificar todo este incompreensível faz e desfaz, avança e recua. Ou talvez não...

Como cidadão, não me interessam minimamente os pormenores processuais. São-me indiferentes os anúncios de novos inquéritos e investigações. Interessa-me só e unicamente que a justiça funcione. E era nisto que os intervenientes se deveriam focar, nos resultados. Numa empresa "normal", quando não há resultados, os responsáveis ou mudam ou são mudados. Não ficam tranquila e irresponsavelmente a explicar, ou mesmo a ignorar, os detalhes técnicos do desastre e a prosseguir no mesmo caminho.

A justiça portuguesa tem que mudar ou ser mudada. É uma exigência dos cidadãos sérios deste país!

03 novembro 2005

Ainda os EUA no século 21 – a caminho de quê?

Algo está em curso naquele grande país...

Depois de lutarem de todas as formas e feitios contra um regime totalitário e centralizador chamado União Soviética, estão alegremente a alimentar o crescimento e a viver à custa das poupanças de outro estado totalitário e centralizador, chamado China. Aliás, acho que um dia todo o “mundo ocidental” irá pagar uma bela factura deste novo “eldorado” industrial....

Há 90 anos Henry Ford despoletou uma revolução industrial e social quando dobrou o salário dos seus trabalhadores, permitindo que aqueles que construíam o seu modelo T, também o pudessem comprar. Hoje, a Delphi, empresa de componentes saída da esfera da GM e um dos seus principais fornecedores, pede protecção de credores, por não conseguir cumprir os seus compromissos financeiros. No plano de reestruturação em curso, prevê-se uma significativa redução de salários. Muitos trabalhadores do sector deixarão de poder comprar o automóvel com os componentes que eles produziram.

Algo está a mudar. ..

01 novembro 2005

Na ponte levadiça



Não me apertem, não me cerquem, deixem-me ao menos a ilusão por onde eu seja marginal. Em que grite, quando não deva, uma gargalhada inconveniente. Em que imagine algo insensato, intensamente a parecer real

E sobretudo com a convicção de que jamais ninguém imaginará que tal me possa acontecer, por um esgar nas vossas costas.

Deixem-me ser louco aos bocadinhos porque por inteiro é um problema.
A sanidade absoluta ninguém aguenta e procurá-la já é perigoso

Não me cerquem, não me esqueço, quão brutal é a beleza.

30 outubro 2005

EUA no século 21 – a caminho da secessão?

Foi curioso, após conhecido o resultado das últimas eleições nos EUA, comparar a semelhança dos mapas dos estados republicanos x democratas com a divisão de estados na guerra civil Americana. De facto, parece permanecer bem marcada uma clivagem entre duas “culturas”, uma democrata e progressista no nordeste e na Califórnia e outra republicana e conservadora no centro e no sudoeste. Mas há outros sinais, noutros campos.

A administração Bush não quer promulgar Quioto. No entanto, nove estados da costa leste decidem, voluntariamente, implementar medidas de redução das emissões de CO2.

A Administração Bush propõe nova regulamentação sobre taxas de combustíveis para automóveis em função do consumo. O objectivo é melhorar a eficiência do parque automóvel. Mas, dentro dos 10 automóveis mais económicos vendidos nos USA, que com os ex-equo ficam em 16, há apenas dois de marcas americanas. A legislação é desenhada para beneficiar os grandes SUV’s e pickups dos construtores americanos Ford e GM, cada vez a perderem mais quota de mercado, a piorarem os seus resultados e com mais dificuldades em refinanciar a sua dívida. A proposta entra em conflito com as regulamentações da Califórnia, mais exigentes. E alguns estados do nordeste prevêem seguir a Califórnia, desafiando a administração central...

28 outubro 2005

Ainda Antero...

Na sequência da leitura da “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, que me sugeriu uma entrada anterior aqui no Glosa Crua , resolvi revisitar a biografia de Antero de Quental. E, confirmei a minha inquietação. Antero tinha uma enorme capacidade intelectual, curioso, interessado por tudo, com grande acutilância de visão sobre o mundo que o rodeava, com excelente capacidade de diagnóstico e de expressão. Mas....

Mas, retirando a obra literária e sua influência sobre um meio restrito, a realização de Antero é infinitamente inferior ao que a sua personalidade e capacidades poderiam fazer prever. Não diria nula, mas quase...

Antero insurge-se, e muito bem, contra a ociosidade da fidalguia em detrimento de um esforço sustentado de criação de riqueza. No entanto, que projecto levou ele a termo com sucesso?

E, aqui, acho que reside um problema intrinsecamente português. Curiosidade ampla, análise fina, crítica acutilante mas... incapacidade de planear e de realizar....incapazes de, a partir de um dado momento, suspender os “mas”, definir claramente o caminho, assumi-lo e ir até ao fim.

Outro problema aparente, que não diria tipicamente português, é a incoerência. A facilidade e a desenvoltura com que se critica as nódoas na roupa do vizinho, tendo a nossa própria camisa suja.

24 outubro 2005

Por fora da luz



Para lá da nossa luz?
Desconhece-se, nem se imagina.
O lugar mais escuro? Por baixo da luz?
O lugar melhor compreensível? Por fora da luz?

23 outubro 2005

Claques e torcidas


Notícia de primeira página na “Folha de S. Paulo” de 19.10.2005.

São Paulo e Ponte Preta jogam hoje em Campinas sob o temor da onda de violência que matou três torcedores desde domingo. Em um dos casos, são-paulinos espancaram até à morte um torcedor da Ponte.
O jogo é um dos remarcados devido às fraudes no Brasileiro. A partida anulada fora vencida pelo Ponte (1 a 0). [...]
Os torcedores mortos foram enterrados ontem, em clima de revolta. As torcidas organizadas podem ser proibidas de usar suas camisas (trad. camisolas).

Isto pode ser visto como uma boa notícia para nós: as nossas claques não chegam a este ponto!

Ou como uma má: aonde isto pode chegar...!

20 outubro 2005

Cataratas da Foz do Iguaçu




Já tinha ouvido falar, já tinha visto em fotografia e até mesmo em filme. Apesar disso, não consegui prever a sensação que me provocou assistir a tão intenso e brutal espectáculo natural.

Passei lá num período de grande caudal. É difícil transmitir por palavras ou imagens a impressão causada pela vista do avassalador jorro da água ao longo de quilómetros de largura, o som grave omnipresente e ininterrupto e a humidade intensa levantada na base da queda. Humidade que tapava mesmo a vista da “Garganta do Diabo”, envolvendo o cenário numa bruma pesada e que, mais próxima, se transformava numa espécie de chuva louca... Nunca assisti ao vivo a uma erupção vulcânica mas as quedas de Iguaçu fizeram pensar num vulcão de água.

Não, não é de descrever. É de ficar respeitosamente parado, em profunda reverência por tão arrasadora demonstração de poder da natureza.

19 outubro 2005

Os eleitores e a mudança...

Porque será que os eleitores são tão avessos à mudança quando se trata de autárquicas e tão prontos a “alternar” quando se trata de legislativas?

De uma forma geral, a mudança de um presidente de câmara só ocorre quando há um historial bastante mau ou quando o “desafiador” é mesmo uma estrela. Desde que o presidente em funções tenha um desempenho mínimo, a reeleição parece garantida.

É evidente que em muitos municípios, principalmente no interior, a câmara é um grande empregador e um pivot de grande parte da actividade económica local. Mas, será que o estabelecimento da “teia de interesses” com a administração local por parte das forças vivas, é suficiente para mobilizar tanto eleitorado? Se for assim, é extraordinariamente preocupante.

Quando vemos a facilidade com que o governo em funções é capaz de cair em intenções de voto, à mínima contrariedade, à mais pequena escorregadela, à primeira medida impopular, não deixa de surpreender a diferença que se regista com as autarquias.

Bom... os autarcas não tomam nem assumem medidas impopulares (para lá de raras excepções, das quais destaco Rui Rio). Também não parecem ser responsáveis/responsabilizados pelas asneiras que fazem. No entanto, se falarmos somente em urbanismo, já temos pano para muitas mangas...

É curioso comparar ainda a forma como a comunicação social e a opinião pública reagem, e muito bem, a nomeações de “amigalhaços” na administração central com a aparente resignação com que se encara o que se passa no poder local.

Em resumo, creio que os autarcas não são suficientemente avaliados nem responsabilizados pelo eleitorado. Pode ser por deficiente cobertura da comunicação social, pela simples e clássica resistência à mudança - “Este, já conhecemos, o outro pode ser pior....”.- ou por reflexo de defesa tribal e autismo bairrista... “olha olha!! Vêm agora aí uns palermas de fora criticar um dos nossos. Fará algumas asneiritas sim... mas quem há quem as faça ainda pior, há sim senhor! E, ao menos, deixa obra!!”

Mesmo quando, nos casos limites, entra a responsabilização criminal, os eleitores continuam a identificar-se com a “gente da terra”, conforme se verificou nas últimas eleições. Estranho....e com péssimos resultados bem à vista.

17 outubro 2005

Sinistralidade rodoviária. Legislação ou formação?

De acordo com os números divulgados recentemente, o novo código da estrada fez aumentar as multas mas não diminuiu a sinistralidade. Para mim, isto não constitui surpresa. Creio que uma boa parte do problema não está na legislação mas sim na formação e na consciencialização.

Por exemplo, muitos acidentes graves por despiste em IP’s de montanha, são provocados por simples inaptidão e falta de preparação dos condutores. Não sabem conduzir. Não sabem que naqueles declives, em piso molhado, uma travagem fora de sítio ou um golpe de direcção podem ser suficientes para desequilibrar o automóvel, mesmo não estando em excesso de velocidade. E isso não se resolve com legislação.

Outro exemplo sintomático, é a utilização dos coletes reflectores. O pessoal até aderiu bem e acha “catita” envergar o dito cujo, até mesmo nas costas do banco. Mas.... quantas vezes se vê a família à volta do carro; o condutor com o colete obrigatório e os demais sem colete, porque não é obrigatório. Já me ocorreu ver um colete a mudar um pneu quase completamente escondido por pares de pernas em redor. Estranhamente, o pessoal não sabe, nem pensa, que, se o colecte é obrigatório, é porque é extremamente perigoso estar no exterior do automóvel, na estrada, e, se for mesmo necessário estar, o colete ajudará a ficar mais seguro.

Aprender a conduzir, no léxico oficial, equivale a saber de cor pesos, dimensões e outras coisas de utilidade muito questionável relativas a veículos que nunca se conduzirão. A perícia na condução é medida pela capacidade de estacionar e fazer inversão de marcha sem tocar no lancil do passeio. Depois, há os que são melhores ou piores autodidactas; que têm maior ou menor sensibilidade; que têm sorte, ou não.

As revalidações da carta de condução são meras formalidades administrativas. Que tal um pouco de formação contínua obrigatória?

14 outubro 2005

Eu diria que algo não bate certo...



Por vezes há coisas que nos confundem.
Em que algo nos diz que não está bem assim....
Não bate certo...

Felizmente, há outras coisas, espetadas no chão, para ajudar a situar a questão...

13 outubro 2005

E ainda... Brel

Quando, há cerca de 12 anos, peguei em armas e bagagens para me instalar na Bélgica, para uma “comissão de serviço”de uns anos, esse país tinha, para mim, dois “B”s associados: Bruxelas e Brel.

Tendo-me instalado num meio principalmente flamengo, desde logo me surpreenderam algumas respostas à minha curiosidade sobre o significado de Brel para eles. Respostas evasivas. “Sim... Brel... pois... acho até que temos lá em casa um disco dele”. Não conseguia entender como, para a dimensão de Brel e o seu impacto na cultura do país, se podia falar dele como se de alguém datado, que tivesse tido um sucesso numa dada altura, e de quem ficou um álbum no armário.

Polémico sim, de gostar ou de detestar, ou, quando muito, de desconhecer... mas nunca de referir superficialmente. Posteriormente aprendi que a separação, sem coragem para divórcio consumado, entre Brel e alguns flamengos, se deveu ao corrosivo “Les Flamingants, chanson comique” do “Les Marquises”. Depois da anterior brincadeira sobre uma certa “limitação de vistas” do “Les Flamandes”, Brel não teve meias-palavras para arrasar um espírito mesquinho e hipócrita daqueles que eram “nazis durante as guerras e muito católicos no intervalo delas”.

A resposta a esta provocação foi o tema ter sido censurado pela rádio pública flamenga e, muitos flamengos, terem escondido os álbuns lá para a parte de trás do armário... sem coragem para os deitar fora, nem para manifestar frontalmente o seu desagrado.

Provaram que Brel tinha razão.

11 outubro 2005

E ainda música, e ainda Brel



A referência da semana passada a J. Brel, fez-me ir consultar, uma vez mais, o livrinho que veio com a minha caixa de CDs da sua obra completa. E cito, em tradução livre, sem quase nada acrescentar, excepto uma referência à extraordinária beleza de LE BON DIEU.

[...]
Brel abandona-nos definitivamente, parece. Ele mostrará, no entanto, L’HOMME DE LA MANCHA, alguns meses mais tarde, onde LA QUETE, parece resumir toda a sua vida. Mas brevemente saberemos pelas revistas indiscretas que ele partiu para se perder entre o céu e a água nas ilhas do sol. Rumores de doença, imprecisos e mal desmentidos, correm. Várias vezes se anuncia a sua morte. Depois o silêncio acabará por cair sobre esta agitação e, pouco a pouco, as notícias são cada vez mais raras.

[...]
E depois, no Outono de 77, a notícia cai, sem que se saiba muito bem se se pode acreditar mesmo nela, as decepções após as esperanças muito vivas são as mais dolorosas: Jacques Brel está em estúdio a gravar um novo disco.
Raramente um acontecimento discográfico foi tão aguardado. Um milhão de pré-encomendas [...] As pessoas fazem fila na rua como para comprar pão em tempo de guerra. Algumas discotecas afixam mesmo na montra “Brel esgotado”, quando o álbum ainda não sequer saiu. E, brevemente, em centenas de milhares de pratos, um disco de vinil negro, pejado de palavras que entopem a garganta. Uma voz vinda de tão longe (no sentido tanto geográfico como humano), que subitamente nos pede contas sobre a morte JAURES, nos fala da de JOJO e do insuportável sofrimento de VOIR UN AMI PLEURER ou um casal acabar em cinzas (ORLY) [...]

Um disco em que se sente a cada instante a urgência de arrancar ainda algumas palavras à morte que avança, antes se sair do jogo “por decisão do árbitro” (VIEILLIR).

Um disco, enfim, após o qual um homem só se pode calar. Definitivamente. Depois de ter parado com uma palavra as lágrimas daqueles que, daí em diante, deverão aprender a seguir de pé sem ele.

“Veux-tu que je te dise
Gémir n’est pas de mise
Aux Marquises"


* foto da capa do albúm "Les Marquises"
Continua...

07 outubro 2005

Pragmatismo eleitoral ou falta de seriedade?

Se os “quatro magníficos” ganharem as eleições em Gondomar, Felgueiras, Amarante e Oeiras, será mesmo uma surpresa? Seguramente será uma vergonha, mas, se eles foram escolhidos e protegidos até agora pelos partidos, não terá sido precisamente pela sua capacidade de ganhar?

Ou já nos esquecemos, nas últimas autárquicas, da distracção do PS que insistiu em apostar em Fátima Felgueiras quando todos os indícios apontavam para a prudência da sua exclusão? Ou do autismo do CDS/PP que nunca se preocupou com o comportamento do seu autarca do Marco, desde que ele ganhasse as eleições. Ou o PSD? Que esperaria ele quando lançou Valentim Loureiro, para já não falar no seu indescritível João Jardim....?

Para além deste “pragmatismo” dos partidos existe algo mais a assinalar que é o “pragmatismo” do eleitorado. Quando confrontados com dúvidas quanto à seriedade dos candidatos, afirmam que isso não é demasiado importante, desde que a “terra” beneficie com a sua “obra”. Estou mesmo a ver o Sr. Ruas a vir à praça, com modos de virgem ofendida, defender a sua corporação...

Eu acho que tudo isto não é pragmatismo. É falta de princípios. Um pouco como eu dizer que não me importo de ter um sócio desonesto, desde que eu tenha algo a ganhar com isso. E quero acreditar que a falta de princípios sãos se paga sempre, mais cedo ou mais tarde.

E, já agora, que se veja em detalhe a origem do financiamento destas campanhas. Se a dos partidos já tem muito que se lhe diga, estas então....

06 outubro 2005

Ainda a música e o mundo ...

Estará quase a fazer um ano que recebi a visita inesperada dum argelino, num dia em que, por mera coincidência, no automóvel tinha a rodar um CD do argelino, Cheb Mami. A surpresa do visitante foi enorme e ainda aumentou quando lhe manifestei a minha admiração pelo “seu” Albert Camus. Uma semana depois, recebi uma encomenda da Argélia com 4 CD’s, 1 DVD e dois romances, tudo de produção Argelina.

Para retribuir o gesto simpático procurei uma pequena amostra da nossa música. No capítulo da de raiz tradicional, encontrei, por puro acaso, um disco chamado “Segue-me à capela”. Um simples disco, edição de autor, em que 7 vozes femininas e pouco mais revisitam temas principalmente tradicionais de uma forma extraordinariamente bela, singela e profunda, pura e rica.

A música tradicional é talvez um dos domínios em que é mais evidente a nossa raiz multi-cultural e em que essa raiz se mantém firme e inabalável. Antes de ter sido redescoberta nos finais de 70, inícios de 80, andou escondida durante muitos anos sob o manto redutor e, muitas vezes, deturpador da “folclorite”. Quem ouviu não esqueceu uma “Charamba” da Brigada Vitor Jara ou uma “Tirana” dos Almanque ou, noutro contexto, o Júlio Pereira que com um simples disco fez mais pela reabilitação e promoção do cavaquinho do que 50 museus e 10 ministros juntos. Uns anos largos passados sobre essa fase, são bem-vindas novas lufadas de ar fresco como este “Segue-me à capela” para nos recordar e reavivar um pecúlio em que somos inquestionavelmente muito ricos.

Como dizíamos no lema de uma colectividade destas andanças em que estive envolvido há uns bons anos: “património cultural é a memória de um povo” (um bocadinho redutor, frase feita, gasta, usada e abusada por muitos anos de uso e etc, mas com um fundo inquestionável...).

Curiosidade final. Quando, mais tarde, tentei comprar alguns CD’s das “Segue-me à capela” para oferecer numa visita à Tunísia, a Fnac já os tinha retirado, trocados talvez por umas “Marisas”. Tive que os pedir directamente ao grupo.

03 outubro 2005

Música no mundo

Gosto bastante de música, mas, frequentemente, sofro de um problema de excesso de expectativa.

Vejamos alguns exemplos e começando pela anglo-saxónica, onde, como já me disseram, o meu desfasamento não se mede em anos mas sim em décadas. Depois dos gloriosos 70’s dos Pink Floyd e Genesis/Peter Gabriel, alguém conseguiu sequer chegar perto? Não, eu acho que não. Em consequência, ligo pouco ao que se faz por aí...

Música de expressão francesa. Grandes autores, grandes intérpretes. Apesar de uns trabalhos recentes com algum interesse de Alain Souchon, alguém conseguiu chegar perto sequer do grande Jacques Brel e, em particular, do seu assombroso álbum final, “Les Marquises”? Não, eu acho que não.

Música brasileira. Todo um mundo, que nós, portugueses, tivemos o privilégio de descobrir cedo. Mas... o que se faz hoje, estará ao nível daquela fase da qual destaco Chico Buarque e a grande obra “Construção”? Não, eu acho que não.

Música portuguesa. Consciente da dificuldade de ser juiz em causa própria, considero que temos um património riquíssimo e nem vale a pena debitar nomes. Mas, nos últimos cinco anos, quantos trabalhos de fôlego foram feitos que perdurarão? Excluindo talvez os inéditos de António Variações, pelos Humanos, e o excelente “Norte” de Jorge Palma, não me ocorre mais nada. Mesmo o aparentemente inesgotável Sérgio Godinho perde-se em novas versões de sucessos antigos, no que já me parece mais uma delapidação do que uma reinvenção.

Tenho buscado música por outros cantos do mundo. Das minhas idas frequentes à Argentina, há meia dúzia de anos, ficaram destacados o incontornável Piazzolla e Adriana Varela. Mas... depois da “Balada para un loco” que mais se poderá fazer? Muito pouco, acho eu.

A seguir ao Magreb, com Cheb Mami e Souad Massi, vários gregos, a Turquia com Onur Akim, chegou agora a vez dos Balcãs. Comprei dois CD’s, de Goran Bregovic e Boris Kovac. Bom, muito bom mesmo. Ainda bem que existe tanto mundo. Mas.... depois da fabulosa “Ballads at the end of time” do segundo, se calhar vai ser difícil encontrar melhor....

29 setembro 2005

Quem tem medo da Microsoft? (3)

Actualmente estamos como se houvesse um fabricante de automóveis, por exemplo, a GM, dominante com 95% do mercado. Que, explorando esse sucesso, também passou a ser dominante na construção e exploração das estradas, nos sistemas de portagens, nas áreas de serviço e no combustível fornecido. Seria também dominante nos camiões, autocarros e motociclos. Teria participações minoritárias noutros meios de transporte alternativos.

Quem tiver um GM abastece automaticamente. Quem não tiver terá problemas porque, quando a sua marca estiver adaptada ao sistema de abastecimento definido pela GM, esta mudá-lo-á. Esta exclusão “de facto” traduzir-se-ia noutros aspectos: Quem tiver um GM passa na ViaVerde; quem não tiver fará a fila para a portagem manual porque o seu veículo não se entende bem com o sistema GM da portagem. Quem tiver um GM dialoga com os semáforos e apanha mais verdes; quem não tiver apanha mais vermelhos. E por aí fora...

Quando a GM fosse instada a revelar a fórmula do combustível, diria que se trata de propriedade intelectual protegida e acrescentaria que não garante o correcto funcionamento dos seus automóveis com combustível não GM. Diria também que não garante a segurança das estradas em que os semáforos não sejam GM.

Dá para imaginar o problema enorme que esta situação representaria. Nas tecnologias de informação estamos parecidos. O “bug do ano 2000”, cuja história aliás não está totalmente contada, demonstrou que estamos dependentes social e economicamente dos sistemas informáticos muito mais do que imaginávamos.

Mais do que um problema comercial/jurídico ou Europa versus USA, a MS é um problema estratégico macroeconómico. Mais do que penalização, creio ser necessária regulação. Exactamente, como há para outros aspectos sensíveis, como a energia. Ninguém imagina um mundo em que o petróleo seja dominado por uma única companhia, pois não?

27 setembro 2005

Quem tem medo da Microsoft? (2)

A Intel e a Microsoft (MS) avançaram de vento em popa. Alturas houve em que se trocava de PC’s porque a nova versão da MS não corria no antigo hardware da Intel e, no final, depois de pagar o novo sistema, não se entendia bem o que se tinha ganho em funcionalidade efectiva.

Com esses proveitos, a MS investe em desenvolvimento, recruta bons profissionais e compra produtos que integra. Progressivamente vai aniquilando a concorrência e esvaziando o mercado em quase todas as áreas em que entra.

De uma forma um pouco simplificada pode dizer-se que a Microsoft nunca criou nada de brilhante. Quem se lembra dos primeiros processadores de texto e folhas de cálculo, sabe que eles eram muito mais agradáveis de utilizar do que os produtos MS que os seguiram. Mais recentemente, quem usou o Lotus Notes ou o Netscape sabe o que é a sua comparação com o Outlook e o Microsoft Explorer.

Também não mostrava grandes preocupações com a qualidade dos produtos lançados no mercado. Quando os Macintosh tinham já um sistema gráfico a funcionar perfeitamente, a MS apresenta as primeiras versões do Windows com um desempenho e uma fiabilidade indignas de qualquer “software-house” de vão de escada. A quantidade de palavrões vociferados no mundo inteiro por trabalho perdido devido aos bugs da MS, dá para encher muitos infernos.

A MS dominante desperta ódios e paixões. O seu sucesso é devido à sua estratégia e ao mercado que abraça a independência do fabricante com tanta força que desvaloriza a nova dependência criada.

Recordo grandes discussões tidas com directores de informática que, quando lhes oferecíamos sistemas não MS, mas muito mais adequados e fiáveis para as aplicações críticas em causa, diziam que tinham decidido que a sua política era “tudo MS” e ponto final.


Continua...

26 setembro 2005

Quem tem medo da Microsoft? (1)

No início da década de 80, a IBM decidiu lançar um novo conceito de computador. Nessa altura os computadores “a sério” eram grandes, complicados e tribais. IBM para finanças; Digital para Indústria e automação, HP para instrumentação e mais algumas variantes regionais “de bandeira”.

A IBM pensou num computador pessoal, pequeno, que funcionaria isolado. Dedicado a uma elite que beneficiaria desse luxo um pouco à imagem dos cadeirões dos seus gabinetes. Como o alvo era limitado, não se preocupou em investir demasiado. Para os dois elementos nucleares, processador e sistema operativo, resolveu ir às compras.

Na altura havia dois fornecedores de processadores, Intel e Motorola, e a IBM escolheu o primeiro. O sistema operativo foi encomendado a uma tal Microsoft que o “arranjou” de uma forma quase anedótica. Este sistema operativo chamou-se Microsoft DOS e, mesmo para um brinquedo, era básico e muito limitado. Não podia receber mais do que uma ordem de cada vez e não sabia sequer partilhar uma impressora, muito menos dialogar com um par.

Sucedeu que o Intel e o MS DOS podiam ser comprados por terceiros e, de repente, desataram a aparecer os PC’s “parecidos com IBM/ IBM compatíveis” que funcionavam quase da mesma forma. Chamavam-se “clones” e, importados avulsos, chegavam a Portugal a um terço do preço dos IBM’s. Alguns eram tão parecidos que chegavam a ter caixas da mesma forma e com o baixo-relevo quadrado onde só faltava o símbolo da IBM.

Está-se mesmo a ver que estes “clones” começaram a invadir espaços e gabinetes não tão luxuosos. Sem querer, a IBM tinha criado um standard para o qual se desenvolveu uma múltipla oferta de equipamentos. Até aí os sistemas “tribais” punham o utilizador na dependência completa do fabricante da máquina. Esta independência foi saudada com enorme entusiasmo pelos utilizadores.

O mundo em geral e a indústria informática em particular não voltariam a ser os mesmos. É curioso comparar o que hoje é um PC com o que a IBM imaginou e pensar que, se a IBM o tivesse previsto, teria agido de forma diferente, controlando a arquitectura, e, no final, a história seria completamente diferente.


Continua...

24 setembro 2005

Ser o melhor!

Há uns tempos li uma história sobre um "caso de sucesso" numa grande organização, subordinada ao tema: É necessário ser a melhor empresa do sector, aliás, isso é uma questão de sobrevivência!

E fiquei a pensar que, se todos morrem, excepto o primeiro, ficamos com uma estrutura de monopólios, o que não parece muito eficaz. Como a empresa em questão é um ex-monopólio e ainda um quase monopólio, dá-se um desconto.Quando, desesperado, eu tinha que conduzir no centro Paris, ensinaram-me que o truque era ser sempre o mais rápido. O que vai mais depressa do que os demais pode escolher o caminho, os restantes ficam condicionados e, no limite, o mais lento fica completamente entalado. Confirmei-o plenamente na grande rotunda do Arco do Triunfo, em que, várias vezes, a prudência me fez estancar, por ficar sem espaço para avançar.

Julgo que se poderá estabelecer alguma analogia com a estratégia empresarial. No entanto, considerar que, entre vários milhões de condutores, todos têm que ser o mais rápido dará um resultado, no mínimo, caótico.

É fácil pagar a consultores para propagar tamanhas e solenes declarações de intenções. Agora, o que é exactamente "ser o melhor?" Para poder escolher o caminho e sobreviver, algo de diferente tem que ser feito. A dificuldade toda está no identificar esse quê de diferente... e fazê-lo. Pretender "ser o melhor", sem mais, é uma expressão oca.

Por outro lado, dá a impressão de que, quando já se é o melhor, está o objectivo cumprido e... resta esperar ser-se ultrapassado.

Não aprecio quem acha que faz as coisas bem feitas. Admiro muito mais quem, todos os dias, as tenta fazer melhor do que na véspera

22 setembro 2005

E o meu desapontamento crónico...

(continuação do capítulo anterior...)

Não tenho uma concepção clubista da opção política. Não tenho vontade nem expectativa de obter algum benefício directo. Tenho liberdade total para escolher. No entanto, é-me cada vez mais difícil escolher. Serei eu que estou cada vez mais exigente, ou serão as opções que são cada vez mais fracas? A minha sensação é de que estou continuamente a baixar o meu nível de exigência a cada eleição que passa. Já deixaram de contar as opções políticas e estratégicas para passar a contar a dedicação do candidato à causa pública; esta deixou de contar para passar a bastar a capacidade de liderança do candidato. Depois, passei a privilegiar a alternância, que é como quem diz “vamos mudar e logo se verá”.

Os partidos “do poder” são cada vez mais “aparelhos” para boys em carreira política, que deles se servem, em vez de servirem como instrumento de representação dos eleitores que neles votam.

A alternância significa nomeações políticas para quem está em cima e estacionamentos remunerados no aparelho, ou no diabo mais velho, para quem saiu (afinal não sabem fazer mais nada...). Além da falta de eficácia na função de base, cria uma legião de quadros sombra que dalguma forma serão pagos (Ah! As necessidades de financiamento dos partidos...!)

Alternativas: abstenção é demissão; radicalismos são opções pela negativa e não pela positiva. Votar em branco é “passar/não ir a jogo”. Pode fazer-se às vezes mas não deve ser sistemático...

Apesar de tudo, quero ser um cidadão de pleno direito, não me considero “exemplar raro” e não encontro quem me represente.... e depois, ainda por cima, me chamam, desdenhosamente, “centrão”!

20 setembro 2005

Desapontamento é o que faz mexer este país

Neste momento as pessoas estão desapontadas com o líder B e o seu partido vermelho no poder. Por isso, de acordo com a sabedoria deste tempo, votarão no líder A e no seu partido azul. Antes, tinham estado desapontadas com o líder C do partido azul, e por isso votado no líder B. O líder C tinha sido eleito porque os eleitores estavam desapontados com o líder D...

Os média, também, há muito que elegerão o desapontamento como máxima e, como os média são tão influentes, vivemos um verdadeiro boom de desapontamento.

[....] desde então temos visto o que se tornou numa lei nas eleições: Desemprego e dívida pública crescem com cada governo; em cada eleição, isto custa votos ao partido do poder.

[...] Com o líder C, desemprego, falências e dívidas eram desemprego, falências e dívidas do parido azul. O líder B conseguiu, por sua vez, tornar o desapontamento com o líder C, uma simples recordação. O desemprego, falências e dívidas do partido azul, tornaram-se, novamente, desemprego, falências e dívidas do partido vermelho, e por aí fora.

[...] o eleitor que muda o voto não é meramente seduzido a curto prazo, mas sim mais ou menos permanentemente desiludido.

Quanto tempo tardará até ficarmos desapontados com o líder A? [...]


O tema parece algo familiar, não?
Qual será? As eleições .... na Alemanha!
Traduzido livremente do International Herald Tribune de 16.09 que, por sua vez, cita Sven Hillenkamp do Die Zeit.

O resultado só não foi tão claro por défice de carácter/carisma do líder A, Angela Merkel, e excesso dos mesmos do líder B, Schroeder. Está bom de ver que o C é H. Kohl e o D é H. Schmidt.

Acho que por cá já vimos algo muito parecido, não? Como anda semelhante a democracia no mundo...

18 setembro 2005

Cabedelo do meu tempo



Atravessada na foz, uma língua de areia. Duna frágil e instável. Desafia a corrente do rio, sustendo o ímpeto das vagas. Possivelmente que, se um deles falhasse, não sobreviveria e de resistir desistiria.

Muralha frágil. Água doce, água salgada. Ilógico recorte. Mas que está.
Assim como eu estou, moído de pancada, entre a corrente do meu tempo, inexorável a desaguar, e o vaivém dos dias que me bate na cara.

O rio constante marcando a irreversibilidade do fim e o mar cíclico de ondas e marés recomeçadas.

Cabedelo do meu tempo, heroísmo angustiado de aguentar e de poder escolher para que lado me afogar.

Ou ficar por enquanto só, parado, isolado, na imensidão dos dois lados.
Entre o fim de um curso e o instintivo refazer das vagas

16 setembro 2005

Há quem se preocupe comigo!

Passou-me recentemente pelas mãos o resultado de um inquérito mundial, realizado no final de 2004 por um fórum da indústria e distribuição de bens alimentares. O organismo chama-se CIES e o inquérito abrangeu 65 países. Solicitava-se a responsáveis do sector que, de uma lista de 13 pontos, hierarquizassem os que considerassem mais importantes para o ano seguinte.

Houve um tema que, do lado dos fabricantes, saltou espectacularmente do nono lugar em 2004 para o terceiro em 2005. Bastante acima do 12º e penúltimo lugar para o recrutamento e retenção dos seus recursos humanos. Também acima do nono lugar da segurança alimentar e qualidade dos produtos. O que é então esta estrela ascendente? A preocupação com a saúde e a alimentação dos consumidores. De uma forma simplificada, não querem ser responsabilizados por criarem obesos.

Eu acho isto, o cúmulo! Não é difícil saber o que se tem que fazer em termos de alimentação para evitar a obesidade. Aprende-se nos primeiros anos da escola e não custa nada a assimilar. Quem não quiser ser obeso, não necessita da preocupação paternalista dos fabricantes de produtos alimentares. Nalguns países, USA e UK em especial, os consumidores são, e querem ser, tratados como absolutos diminuídos mentais e irresponsáveis. Veja-se por exemplo as recomendações de segurança nos manuais de utilização de alguns produtos, incluindo automóveis, com inspiração anglo-saxónica. Chega a ser insultuoso à inteligência.

Como pouca manteiga, mas, quando a como, quero-a salgada. Os ovos-moles têm que ser bem doces. Os rojões têm que ter gordura. Assusta-me imaginar que, por altruísta preocupação de terceiros com a minha saúde, passe a só encontrar manteiga insossa, ovos-moles com adoçante ou rojões magros!!!

14 setembro 2005

Pinochet novamente ou uma questão de vento

No passado dia 11 de Setembro, cumpriu-se mais um aniversário do golpe de estado que colocou Pinochet no poder no Chile. E voltam as questões recorrentes. Que justiça pode haver para o que se passou há 30 anos e com aquela dimensão? Será que a barbárie que correu a América Latina é assunto definitivamente do passado ou não?

Há quem diga que os anos Pinochet salvaram o Chile da derrocada económica. Independentemente das "asneiras" que Allende possa ter feito, ou pudesse vir a fazer, é um facto que a instabilidade de Allende e a estabilidade Pinochet foram muito mais devidas à política externa dos USA do que a qualquer política interna. Além disso, que importância tem que o indivíduo que espanca tenha os dentes lavados, peça licença antes de bater ou cheire mal e seja um malcriado que insulta? Há coisas para as quais não existe contrapeso que consiga fazer mexer o fiel da balança.

No final dos anos 90 desloquei-me com alguma frequência à Argentina que, sem ter "beneficiado" da projecção mediática que se deu a Allende e a Pinochet, não deixou de ter a sua dose de uma longa e requintada barbárie. Confesso que me emocionava profundamente encarar as fotografias nas paredes de gente real, não dos filmes, de jovens de idade ou de espírito, cujo olhar foi definitivamente fechado, muitos deles única e exclusivamente por terem tido a ousadia de sonhar e falar em mudar o mundo.

Havia um aspecto que me surpreendia no quotidiano de Buenos Aires, ainda antes da grande crise de Dezembro 2001, que era a convivência fisicamente muito próxima de uma elite a viver "como na Europa", com uma grande franja de população que mal sobrevivia. Numa altura em que estava com uns colegas numa cidade da periferia de Buenos Aires lemos nos jornais locais artigos sobre o aparecimento de alguns casos de um tal "hanta virus". Não conhecíamos a doença mas, pelo tom das notícias, parecia feia. Ao perguntar na recepção do hotel lá nos explicaram que era um vírus que aparecia nos ratos com o lixo, no lixo com os ratos, mas que não nos preocupássemos porque era um problema “só dos pobres”. Ainda perguntámos se era contagioso, como se transmitia e responderam-nos que sim e que se transmitia pelo ar. Fomo-nos deitar desejando-nos mutuamente votos de boa noite e de bom vento (e que soprasse na "boa direcção"...).

Não, não estou a insinuar que, se a elite não mudar de atitude, corre o risco de ter, de novo, os seus filhos idealistas com os ossos partidos às mãos de um sargentozinho invejoso nascido junto dos ratos. As grandes tragédias, como os acidentes aéreos, são consequência de um conjunto cumulativo de circunstâncias e os acontecimentos de há 30 anos na América Latina foram principalmente mais um dos cenários da "Guerra-fria". Hoje não há guerra-fria mas os relâmpagos saltam entre nuvens próximas com cargas demasiado diferentes. O risco será tanto maior quanto as nuvens positivas ficarem cada vez mais positivas e as negativas cada vez mais negativas.

Entretanto, nós por cá tudo bem. Estamos melhor organizados. Arranjámos uma organização geopolítica, mais uns acordos de Schengen que cá nos garantem que o vento sopra sempre na "boa direcção". Já imaginaram o que seria a Europa e África juntas no mesmo espaço geopolítico?

12 setembro 2005

O Presidente e o cão

Conto várias vezes uma história deliciosa, segundo a qual, a fábrica do futuro, completamente automatizada, só tem dois seres vivos. Um engenheiro e um cão. Para que servem? O engenheiro para intervir quando houver um problema; o cão para evitar que o engenheiro mexa nas máquinas quando não há problema. Esclareço que sou engenheiro.

Acho que num regime maduro, como em Portugal, o Presidente da República, é um pouco este engenheiro. Estar lá, atento, inspirar confiança e saber intervir, mas só quando for necessário, não antes. Há, no entanto, uma diferença. Não existe cão. O Presidente tem que se autocontrolar.

Vejamos os dois candidatos principais. Cavaco Silva é um engenheiro de projecto. Não se resignará a ficar a ver as máquinas a trabalhar. Terá uma enorme tentação de intervir, ultrapassando as suas funções. Mário Soares quererá mostrar que é o dono da fábrica. As suas intervenções serão mais para evidenciar o seu poder sobre a “sua propriedade” do que em função das necessidades reais.

Coloquemos ainda no devido lugar a importância do Presidente. Creio ser consensual que Jorge Sampaio interpretou e desempenhou bem a sua função. No entanto, não foi, nem poderia ter sido, ele a fazer aumentar o PIB. Mais uma vez, isso não depende de um Presidente providencial nem de um D. Sebastião. Depende do trabalhinho sério de todos.

Finalmente, considero que o papel de Mário Soares na história recente de Portugal não está esclarecido. O seu desempenho e as suas motivações estão mistificados. Na sua infeliz candidatura à Presidência do Parlamento Europeu já vimos algumas estaladelas no verniz. Talvez esta campanha, que ou muito me engano ou será também algo infeliz, ajude a esclarecer quem é e quem foi realmente Mário Soares. A História agradecerá.

09 setembro 2005

O Mundo está assim

1. Relatório PNUD, Setembro 2005

As políticas comerciais desiguais conduzidas pelos países ricos impedem o crescimento dos países pobres [...] os subsídios agrícolas [...] permitem-lhes manter uma posição de quase monopólio no mercado mundial de exportações agrícolas. Os países em via de desenvolvimento perdem cerca de 19,7 biliões de euros por ano devido ao proteccionismo agrícola e subsídios praticados pelos países ricos. [...] exemplo do açúcar [...]

Por trás da retórica do mercado livre e das virtudes de uniformizar as regras do jogo, esconde-se a dura realidade de que alguns agricultores dos mais pobres do mundo, vêm-se obrigados a rivalizar, não com os agricultores do Norte mas com os ministros das finanças dos países industrializados.

As barreiras comerciais às quais são confrontados os países em vias de desenvolvimento exportando para os países ricos são, em média, três vezes mais elevadas do que as aplicadas às trocas entre países ricos. Este taxação perversa e as políticas comerciais desiguais continuam a impedir que milhões de habitantes dos países mais pobres do mundo possam sair da pobreza, mantendo-se desigualdades obscenas.
2. O mundo está melhor

O estudo da ONU mostra que globalização rima com progresso apesar dos muitos problemas que subsistem
Repetir muitas vezes uma mentira não faz dela uma verdade - e insistir que o mundo está cada vez pior por causa da globalização é uma dessas mentiras que mais um relatório do PNUD, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, vem claramente desmentir. Ou, para sermos mais rigorosos: que a leitura dos seus quadros desmente, já que no texto os seus autores se dedicam por vezes a contrariar as evidências.

O primeiro texto é uma tradução livre de excertos do relatório original do PNUD publicado e destacado no “Le Monde”. O segundo texto é a leitura do mesmo documento de José Manuel Fernandes, publicada no jornal “Público” de 8 de Setembro último. Sim, é o mesmo assunto!

Sobre a globalização e as suas rimas, recomendo a leitura do livro “Globalização – A grande desilusão” de Joseph E. Stiglitz, que foi prémio Nobel de Economia em 2001, chefe do Conselho de Consultores Económicos de Clinton, e um dos vice-presidentes do Banco Mundial. Já foi aqui referido no Glosa Crua .

Realmente, o mundo poderia estar pior do que está, sem dúvida. Não se pode dizer que “foi tudo mal feito”. Mas, defender a bondade do modelo actual de distribuição de riqueza e de desenvolvimento humano e social, é, pura e simplesmente, inadmissível. Acho eu. E também acho que a informação no mundo poderia ser mais informativa

07 setembro 2005

Notas de navegação

Gostaria que o Glosa Crua fosse um espaço aberto e, se possível, de debate de ideias. Como tal, os eventuais comentários deverão ser enquadrados neste contexto e manter o foco no assunto em questão em cada momento.

Sugiro que os participantes se identifiquem, nem que seja com uma sigla qualquer, para se poder seguir a sua linha de intervenção. Quem quiser, pode mesmo registar-se no blogger e, assim, evitar confusões de identificação.

Num debate, as provocações são salutares se forem provocações de ideias e sempre dentro do básico e indispensável respeito mútuo. Serão respondidas quando a resposta possível traga algum valor acrescentado. As outras não são salutares e serão ignoradas. Peço aos demais que as ignorem também.

Obrigado.

06 setembro 2005

Paixão pela inovação

Quis a ironia que passasse pelas minhas mãos, um destes dias, um número antigo da “The Economist”, concretamente o de 16/22-Julho-2005.

Por acaso, deparo com uma página completa de publicidade com o título: “Portugal: uma paixão pela inovação”. O subtítulo dizia “Desde combater incêndios por satélite [...] empresas portuguesas [...] desenvolvem soluções inovadoras para problemas complexos”. Podia ao menos ter saído no Inverno. Ao menos, disfarçava melhor!

Um texto longuíssimo, de letra pequena, que poucos terão lido na íntegra, procura apontar casos concretos. No entanto, os que arranjou, na minha opinião, não convencem ninguém. Fiquei a saber que a forte penetração dos telemóveis, em Portugal, é sinónimo da nossa abertura à inovação!

Custa-me muito ser assim arrasador, mas o anúncio é absolutamente caricato e ridículo. Para anedota, não está mal. Só, talvez, um pouco cara. Aliás, o que fica é uma mensagem subliminar de “Portugal: isto é a sério ou a brincar?”.

Devo dizer que conheço casos concretos, que funcionam, de maior interesse do que os indicados no anúncio. Por exemplo, dois dos três ramos das Forças Armadas de Singapura têm toda a sua logística não militar baseada em sistemas automáticos electromecânicos e informáticos portugueses. Idem para o depósito central de todo o numerário que o Banco da China gere e faz circular em Hong-Kong.

Enquanto ficarmos todos vaidosos pelo simples facto de uma empresa portuguesa estar a trabalhar com a Agência Espacial Europeia num projecto para prevenir e combater incêndios por satélite e, ao mesmo tempo, o país arder a bom arder, estamos a ser uns grandes parolos. E parolos de alto nível, que são os piores.

Há em Portugal um problema cultural com a valorização da inovação. Não são anúncios de projectos, nem toneladas de propostas em papel que valem. O que vale é o resultado!!!

Uma coisa é investigação. Sem resultados, é desperdício puro. Outra coisa é a inovação.

Desculpem lá o tom, mas, neste tema, não consigo controlar a minha irritação.

04 setembro 2005

O 11 de Setembro da Natureza

No imediatamente após o 11 de Setembro de 2001, parecia-me que os EUA não iriam voltar a ser os mesmos. De facto, se exceptuarmos Pearl Harbour, nunca eles tinham sofrido um ataque em casa de amplitude significativa. Envolvidos em várias guerras, nunca tinham visto nenhuma no seu quintal. Pensava eu que tal demonstração de vulnerabilidade deveria mudar-lhes a percepção da sua presença do mundo e da presença do mundo em sua casa. Pensava eu...

Ao ver as notícias sobre as consequências do furacão Katrina, sinto algo idêntico. Os mesmos EUA que se recusam a cumprir Quioto e que não se preocupam demasiado com a eficiência energética, vêm uma demonstração brutal da força devastadora da natureza no seu quintal. Não foi no Bangladesh nem em nenhum outro país miserável, onde as deficientes infra-estruturas podem ser co-responsabilizadas pela dimensão do desastre. Foi mesmo ali, de forma arrasadora, perante a sua impotência total.

Li no “Le Monde” alguma especulação sobre se o aumento da frequência e a alteração das zonas habituais deste tipo de fenómenos não serão já um sinal, e um exemplo, do tipo de impacto que as alterações climatéricas em curso trarão ao mundo.

São de lamentar, evidentemente, as vítimas e os danos em geral. Questiono-me se será possível que não tenham sido em vão. Se poderão servir para fazê-los entender que a Natureza reage com brutalidade e sem controlo. Que manter a sua irresponsável “maravilhosa forma de vida” pode provocar danos sérios e incontroláveis, mesmo no seu próprio quintal. Penso eu agora...

03 setembro 2005

Descubra o que falta

Que há de comum entre estas duas construções?









Partilham o mesmo material de construção, granito, e a mesma aldeia, Pitões das Júnias. É uma aldeia que tem uma localização fabulosa e que já foi muito bonita. É claro que as novas casas não podem ser iguas às de há 50 anos... mas ... serem de pedra não é suficiente, pois não ?

E só mais outra..... e em tamanho pequeno para não assustar demasiado...


01 setembro 2005

“Diz-se...”

Por vezes não resisto à tentação de espreitar as colunas de citações dos jornais. Como eu, provavelmente muito gente. É que o “diz-se que diz-se” desperta a curiosidade: “O que é que eles andam para aí a dizer...?”.

Infelizmente, à bisbilhotice segue-se muito frequentemente a irritação. Eu e muitos mais, quero querer, estamos fartos das tiradas pomposas e enfáticas que costumam ser o conteúdo principal dessas colunas. Das sentenças bombásticas. Das provocações demagógicas. Dos famosos e brilhantes concursos de cuspidelas que consistem em ver quem consegue maldizer da forma mais contundente.

Há, ainda, as citações fora de contexto que são perigosamente pouco esclarecedoras e, muitas vezes, simplesmente fúteis.

Em resumo, num jornal procuro factos e algumas opiniões. As opiniões deverão ser honestas intelectualmente, esclarecidas, enquadradas e consequentes. Este “diz-se que diz-se” não é, na minha opinião, informação

30 agosto 2005

Para lá do dia D



O dia está a nascer. E, sem dúvida, tudo irá colorir generosamente. Já se pressente. Já algumas manchas se animam no caminho. Ali à frente, uma luz intensa ofusca. É demasiado intensa. Não deixa ver o que se lhe segue. E há quem pare na estrada. Com medo. Do que, depois do lume próximo, a claridade escurece.

28 agosto 2005

Multiculturalismo

Na sequência dos recentes atentados terroristas na Europa, tenho visto muito debate e especulação sobre a viabilidade e os limites de uma sociedade multicultural. Há algumas posições surpreendentemente radicais, segundo as quais, uma sociedade multicultural é pura e simplesmente uma utopia.

Não me considero racista, mas reconheço que tenho mais depressa o reflexo de trancar as portas do carro quando vejo uma pessoa de cor atravessar a rua à minha frente do que um “dos nossos”. Não tem lógica, mas é assim. Ao conversar sobre estes temas com um magrebino, ele dizia, e acho que com razão, que, a todos, mesmo a eles, nos tranquiliza estar entre “nossos semelhantes”. O ver “diferentes”, perturba-nos. É natural sentirmo-nos inseguros ao sermos confrontados com uma diversidade que desconhecemos.

Efectivamente, as demonstrações de xenofobia estão mais presentes em situações de crise, quando o nível geral de insegurança é já elevado. Mas, por outro lado, uma sociedade em que sejamos todos louros, de olhos verdes, 1,80m, com as mesmas crenças, com as mesmas certezas e etc., é uma sociedade pobre e em decadência. Quanto mais não seja por consanguinidade cultural.

Creio que o conviver plenamente com múltiplas culturas passa por identificar o nível das diferenças, separando o superficial do profundo. Uns olhos brilhantes e um sorriso de criança são iguais em qualquer parte do mundo.

E, para concluir, deixo essas lindíssimas palavras do grande Luís Vaz que, além de saber muito, também viveu muito: “Bem parece estranha, mas bárbara não.”

Endechas a Bárbara escrava

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E pois nela vivo,
É força que viva.