30 agosto 2009

O Centrão

À aproximação das eleições lá vêm de novo para as primeiras páginas essa palavrão com conotação depreciativa, que me irrita.

Se quando se fala de centrão, se refere ao centrão do poder, dos dois partidos que entre poder e oposição, entre cargos públicos e para-públicos se vão governando, aceita-se depreciação.

Agora, quando a expressão se aplica ao eleitorado que vota por opção individual e assumida, de forma não clubística, acho essa ironia uma grande falta de respeito pela democracia. Posso entender que os partidos gostariam de ter e de ver o seu eleitorado fiel, em que pudessem fazer uma contabilidade certa e previsível sem surpresas desagradáveis. Entendo que gostassem que não houvesse deserções, mas diminuir ironicamente quem tem opinião e decide por si é negar a essência da democracia.
Nota final: eu pertenço, com orgulho, a esse grupo de pessoas

28 agosto 2009

Mourinho e Ramadão

O Ramadão é um mês lunar em que os muçulmanos praticam uma série de abstinências entre o nascer e o pòr do sol, que incluem não comer nem beber. Como o calendário é lunar, avança cerca de 10 dias por ano e em 2009 será entre 22 de Agosto e 20 de Setembro, coincidindo com longos e quentes dias.

Mourinho referiu-se a um dos seus jogadores muçulmano, substituído após meia hora de jogo, dizendo que jejuar não seria bom para o seu desempenho, especialmente nesta altura do ano. Alguém racionalmente discorda?

A União das Comunidades e Organizações Muçulmanas de Itália reagiu de imediato, para logo de entrada o mandar calar. Só que Mourinho não disse que o jogador não devia ser muçulmano, apenas que não é fácil jogar futebol de alta competição em jejum e desidratado....

Acrescentou essa associação que “Um jogador [muçulmano] praticante não está debilitado. Sabemos, graças ao instituto de medicina desportiva, que a estabilidade mental e psicológica dá uma vantagem”. Não digo que não, mas quererá isso dizer que os desgraçados que não aguentam, como os 300 casos que já requereram assistência hospitalar na Argélia, são apenas consequência de pouca fé?

Por um lado, ainda bem que assim responderam. Seria pior que reconhecessem que fisiologicamente não é adequado o esforço solicitado em jejum e exigissem que, por “respeito”, todas as competições desportivas envolvendo muçulmanos passassem a ser realizadas exclusivamente após o por do sol.

25 agosto 2009

Caminho do Fim da Terra



Dizem que o corpo desembarcou na ria de Arosa, ali para os lados de Padrón, e que voou até se instalar onde agora é Santiago. Afonso II das Astúrias tomou o caminho “primitivo” de Oviedo até ao local miraculado.

Na época da reconquista em que a cruz era bandeira, a relíquia do apóstolo ali ao lado catalisava energias e aguçava vontades. Acabou a guerra há muitos séculos e o “mata-mouros” perdeu esse interesse táctico.

Até li recentemente que uma estátua do dito exposta na catedral, recebeu umas tácticas flores para esconder os sarracenos que jaziam aos pés do lutador, por causa das “sensibilidades e susceptibilidades” (piiiii de auto-censura para não acrescentar palavrões).

Ficou o caminho que, desde várias origens, até aquele Finisterra, fizeram de Compostela um burgo singularmente universal, daqueles em que cada esquina tem cheiro forte.

Para lá das cruzes do caminho, sem dúvida que aquele é um caminho, vários caminhos, como mais nenhum... até ao fim da terra.

17 agosto 2009

Ventos


Há muitos ventos.

Há o bom velho vento norte. Certinho e inimigo irreconciliável dos que gostam de bacalhoar na areia. De vez em quando lá se irrita um pouco mais e torna-se realmente desagradável, mas é um vento higiénico que nos limpa os ares com eficácia.

Há o vento sul húmido que fecha o céu e traz água. Há o vento do mar que traz tormenta. E sobra um ponto cardial para o vento dos tolos que aquece o verão e arrefece o Inverno. Estes são os ventos que eu conhecia. Mas há mais.

Há o vento que não se entende bem donde vem e para onde vai. Sopra com arrancos e paragens ameaçadores. Não será o vento dos loucos, mas enlouquece.

14 agosto 2009

Eu sei que eles se lavam pouco, mas....

Quando vivi na Bélgica notei que os hábitos higiénicos locais são um pouco abaixo dos nossos padrões. Olhos arregalavam-se ao ouvir contar que há quem tome banho diariamente e num dia, raro, de canícula acima de 30º, alguém comentava: “Não há hipótese! Com este calor tem mesmo que se mudar de camisa todos os dias”. Não questionei qual seria o limite a partir do qual a camisa lavada diária se tornava indispensável. Pode até mesmo existir uma curva com o número de dias em que se aguenta a mesma camisa em função da temperatura. Eventualmente no Inverno durarão a semana inteira.

Vem isto a propósito de um artigo que li no último número da “Jeune Afrique”, uma espécie de crónica, em que o autor se insurge contra a quantidade de calçado usado oferecido pelos Belgas a ONG’s e que vão calçar africanos descalços. Acrescenta que sendo usados em particular e logicamente nos pés, se trata quase de exportação de um produto tóxico, podendo provocar doenças nos pés dos africanos que os recebem: micoses, eczemas e mesmo a peste! Um escândalo!

Oh pá! Eu sei que ele se lavam pouco, mas daí a ser perigoso a esse nível vai uma distanciazinha e um bom bocado de ridículo! É que nisto de doenças, as da “casa” são sempre mais toleráveis. Tudo o que pode acontecer, e pode acontecer muita coisa ,ao andar descalço numa rua africana é normal; o facto de no meio de uns milhões de sapatos poderem vir algumas sandálias “tóxicas” é que é absolutamente inaceitável!

12 agosto 2009

Valeu a pena

Não há muito tempo e por mero acaso vi passar à frente dos meus olhos na televisão uma daquelas cerimónias pretensamente chiques e mundanas de entrega de prémios. Começam a ser tão frequentes que não sei se haverá stock de “glamour” suficiente para abrilhantar tanto evento. Tratava-se da “III Gala Amália” e o Prémio Composição Poesia foi para um tal Sr Moniz Pereira que do alto dos seus 88 anos entrou divertido no palco em passo de corrida.

Se há momentos em que apetece bater palmas e tirar o chapéu no sentido literal ou figurado da palavra, esse foi um deles.

Aquele “Senhor” estava ali para ser homenageado pelo seu contributo para o fado e, mesmo ignorando o autor, toda a gente conhece e sabe trautear o “Valeu a pena, ter vivido o que vivi, ter sofrido o que sofri....” . Mas aquele “Senhor” é também o responsável pelo desenvolvimento do atletismo português que, em Los Angeles, faz hoje 25 anos dava a Portugal a sua primeira medalha de ouro olímpica.

Um outro “Senhor” entra nesta história, Carlos Lopes, que com 37 anos (sim, trinta e sete) e um atropelamento 2 semanas antes enquanto treinava, emocionou o país inteiro nessa célebre madrugada.

Em termos de meios e de condições estávamos a anos-luz do Pequim 2008, onde algumas declarações pareciam mais de gente divertida em passeio de finalistas do que aplicada num desafio de alta competição.

Sem diminuir a importância dos recursos e da existência de cada vez melhores condições, atingir algo que vale a pena passa por esforço humilde, trabalho rigoroso e... acreditar.
Senão, ficamos pela diversão.

10 agosto 2009

Ainda história de histórias

Continuando com a história sobre histórias e que nem era uma história, avanço com uns complementos para a teoria:
  • Quando não há história de suporte e apenas lá está a conceptual, é um poema;
  • Quando a capacidade de síntese é elevada e a história factual é minimizada, fica um conto, uma espécie de poema em roupagem mais macia;
  • Quando uma história tem centenas de páginas que se esgotam ao dobrar cada uma, é um escrito de um jornalista que julga ser romancista.

09 agosto 2009

A Vida Não Se Perdeu


Não consigo alinhar bem as razões objectivas mas Raul Solnado foi único, genuíno e grandioso.

Um crítico irónico tende a criar inimigos, mas olha-se para aquela expressão e fica-se a imaginar como é que alguém se conseguiria alguma vez zangar com ele. E ele “meteu-se” com toda a gente, não poupou nem se poupou.

Tinha um claro entendimento do limite entre o humor provocatório e a vulgaridade grosseira, jamais pisado.

As rábulas que toda a gente conhece passaram do gravador de fita de enrolar do meu pai para o CD sem ganharem o mínimo cheiro a bolor.

07 agosto 2009

Roubo, mas faço!

A célebre frase veio para os títulos e para as primeiras páginas a propósito dos gestores de coisa pública que “fazem obra”, assumindo até com orgulho existirem ilegalidades associadas. Uma forma de dizer que os fins justificam os meios. Há contextos diferentes. Uns são pura e simplesmente ladrões básicos, outros entendem que sendo mal pagos têm direito moral a um complemento de retribuição não oficial, noutros casos vem o argumento de que “a cumprir integralmente a lei nada se consegue fazer”. O último caso é o mais subtil e por isso o mais perigoso.

É típico do sub-desenvolvimento haver uma entidade que pede um carimbo à esquerda e outra que pede um carimbo à direita sendo que dois carimbos, um à esquerda e outro à direita, também não são aceites. Neste caso a opção é entre parar e nada fazer ou avançar de alguma forma, sabendo que o que quer que se faça com o carimbo será sempre ilegal.

Convém então separar bem duas situações diferentes. Uma coisa é o envelope gordo do empreiteiro, outra coisa é um carimbo mal aplicado. Se a legislação ainda tem problemas com “carimbos” que faça o trabalho de casa. Enquanto não for feito esse trabalho de casa, a justiça que se preocupe então prioritariamente com os envelopes. Pode ser mais fácil detectar e condenar carimbos mas não é aí que está o problema sério.

05 agosto 2009

Emissões zero, sim, pois...


O novo Nissan Leaf apresentado estes dias como o primeiro automóvel eléctrico de grande massa, foi anunciado como sendo de “zero emissões”! Ora, isso não é nada de novo. O meu carro nas descidas quando não toco no acelerador também é zero emissões! Não gasta combustível nem polui nada. Obviamente que é uma argumentação falaciosa porque a estrada não é sempre a descer. É necessário avaliar o ciclo completo.

Aqui é um pouco o mesmo. Quando o veículo parte com as baterias carregadas é como o meu automóvel nas descidas. Mas, e como se carregam as baterias? Com energia eléctrica! E como se consegue a energia eléctrica? Bom, um parte hídrica, está bem, um bocadinho eólica e uma grande parte de centrais térmicas a carvão, a petróleo e a gás que são tudo menos “emissão zero”.

E vamos esquecer o impacto ambiental das baterias no fim da vida. Como qualquer utilizador de telemóvel ou de PC portátil sabe, elas até têm por vezes uns caprichos suicidas esquisitos...

No fundo. é o mesmo argumento do hidrogeno. É limpinho depois de carregar o carro com o gás. Para o produzir... é necessária energia eléctrica, a mesma que carrega as baterias como visto acima.

Como a eficiência energética dos motores térmicos de explosão que temos, salvo erro, anda à volta dos 30%, pode ser que no global, apesar do transporte da energia eléctrica, o bicho até seja ecologicamente mais simpático. As centrais especialmente de ciclo combinado têm melhor rendimento e ele recupera energia nas travagens. Agora deveriam era apresentar as contas do ciclo completo. Este “marketing” ecológico simplificado está a tornar-se uma praga díficil de aturar!

02 agosto 2009

Contar uma história

Não é que eu o tenha estudado, é apenas um palpite. Acho que bem contar uma história tem vários níveis e planos.

Há a história de suporte, a factual. A parte narrativa: abriu a porta, disse isto, olhou para acolá. É a parte que gasta tinta e papel.

Há a história de fundo, a conceptual. Não se escreve directamente, é derivada da factual de suporte.

Há as marcas. Referências que vão ancorando a história de suporte e deixando bandeiras para a delineação da história de fundo.

Uma escrita somente com relato factual por mais elegante e clara que seja é apenas uma reportagem. A boa escrita é aquela que vai deixando marcas criteriosamente e cirurgicamente para no final: clique. De um momento para o outro revela-se o conceito de fundo e completa-se o quadro. Pode até nem ser uma grande conclusão filosófica nem uma suprema evidência estética. Tem é que ter algo que sobressai claramente e permanece depois de passada a última página. Como o travo final que fica na boca depois de um bom vinho ter descido pela garganta.

E terá ficado algo no fim desta pequena história?