07 julho 2014

Orly em tradução livre

Já falei aí para trás de Brel. Em 1966 no auge da carreira decidiu abandonar os palcos. No seu último concerto no Olympia, como sempre, recusou-se aos “encores” mas regressou 7 vezes ao palco para agradecer. Honrou os contractos pendentes e fez o último espectáculo em 1967. Depois de algumas experiências cinematográficas nem sempre bem sucedidas instalou-se nas ilhas Marquesas, no Pacífico. Doente, cancro de pulmão, quando ninguém esperava, ele regressa, doente, para gravar em 1977 um novo álbum de originais, a todos os títulos histórico e admirável, “Les Marquises”. Morreria no ano seguinte. Já falei disso antes – hoje apeteceu-me apenas fazer uma tradução livre de um texto magnífico dessa obra.

Orly 

São mais de dois mil e eu apenas vejo dois
A chuva colou-os, parece, um ao outro
São mais de dois mil e eu apenas vejo dois
E sei que falam, ele dir-lhe-á “amo-te”, ela dir-lhe-á “amo-te”
Acho que estão a tentar nada se prometerem
Estes dois são demasiado magros para serem desonestos

São mais de dois mil e eu apenas vejo dois
E bruscamente ele chora, chora em grandes soluços
Rodeados que estão de gordurosos suados
Que lhes estendem o nariz
Mas estes dois dilacerados, soberbos de desgosto
Deixam simplesmente aos cães a façanha de os julgar

A vida não dá prendas e meu Deus com é triste Orly
Num domingo, com ou sem Bécaud

E agora eles choram, os dois, há pouco era ele apenas
Tão encastrados que estão, não ouvirão mais nada do que os soluços do outro
E depois
E depois infinitamente, como dois corpos que rezam
Infinitamente lentamente os dois corpos separam-se
E separando-se, os dois corpos dilaceram-se
E juro-vos que gritam
E depois retomam-se, voltam a ser um só
Voltam a ser o fogo e dilaceram-se de novo
E depois recuando, como o mar que se retira
Eles consomem o adeus
Ele balbucia umas palavras, agita uma mão vã
E bruscamente ele foge, foge sem se voltar
E depois ele desaparece, engolido pela escada rolante

A vida não dá prendas e meu Deus com é triste Orly
Num domingo, com ou sem Bécaud

E depois ele desaparece, engolido pela escada rolante
E ela, ela fica lá, coração em cruz, boca aberta
Sem um grito, sem uma palavra
Ela conhece a sua morte, acabou de a atravessar
Ela volta-se de novo, os seus baraços tocam o chão
De repente ela tem mil anos
A porta fecha-se de novo, ei-la sem luz
Ela volta-se sobre si e ela sabe que voltar-se-á sempre,
Ele já perdeu homens, mas aqui ela perde o amor
O amor disse-lhe, eis o inútil
Ela vivera de projectos que esperarão para sempre
Ei-la frágil, antes de estar à venda
Eu estou lá, segui-a
Nada ouso por ela, que a multidão debica como um fruto qualquer

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