15 outubro 2015

Memórias de um violeiro


“A primeira sensação é incómoda: a marcha inexorável do tempo tudo separa da vida e aquela quase é uma quase ruína total e memória perdendo-se. Ausentes as pessoas, as pedras e as madeiras rendem-se ao desabamento tão iminente como inevitável. Adivinhando-o, não há gato ou lagartixa que se atreva a percorrer o que foi outrora um soalho...


Entrámos pela parte interior do logradouro, com acesso directo ao que resta da cozinha: porta estreita de madeira carcomida e separando-se das dobradiças, quase esbarrando com uma outra, de acesso a uma espécie de despensa ou arrecadação. O aspecto é desolador...

Na cozinha, à direita de quem entra, banca de pedra e aparador rústico de madeira de pinho velho e negro, de cujas prateleiras pendem restos de enfeites recortados em papel de jornal. Forno e lareira, com uma enorme aba de chaminé a dominar todo o exíguo espaço do compartimento. Onde já nem as teias de aranha persistem no abandono extremo daquele que foi espaço de gente viva dando formas musicais às madeiras. As poucas aparas que não foram consumidas pelo fogo da lareira jazem no chão, confundindo-se com o pó e os fragmentos da progressiva destruição da casa. O trabalho do violeiro cessou em 1986, incompleto num bandolim que terá sido posteriormente acabado por Domingos Machado, violeiro de Tebosa, às portas de Braga.

Joaquim Fernandes, o nosso guia nesta viagem de (re)descoberta das vivências e andanças de Justino Couto, abriu as portadas da única janela da cozinha, que fornecia luz natural para a banca do violeiro (não havia luz eléctrica instalada na casa). Surpreendentemente as dobradiças de ferro enferrujado ainda aguentaram a caixilharia da madeira. No soalho, que ameaça abater-se a cada passo, encontrámos pequenas limas sem cabo, carregados de ferrugem, ponteiros de reduzidas dimensões, fragmentos de uma serra fina e estreita usada para recortes em tampos e aparas de diversas madeiras. Despojos de uma arte interrompida pela doença da velhice precipitada por uma queda, no exterior e junto ao poço, que lhe arruinou o fémur, segundo o sobrinho. De frente para aquela janela, Justino Couto dava forma às madeiras e fabricava violas e outros cordofones, usando ferramentas algo rudimentares mas de inegável eficácia nas suas mãos habilidosas.

Um quarto ou sala relativamente grande tendo em conta as dimensões da casa e uma pequena sala com porta para a Travessa de Vila Chã, sita no lugar do Corvo, da freguesia de Arcozelo, com o número de polícia duzentos e quarenta e dois, completavam esta humilde residência, sem banho nem água canalizada.

De regresso à cozinha reparámos em duas velhas cadeiras que insistem em manter-se de pé. Garrafões de vidro verde, desempalhados, no chão da arrecadação, fazem companhia a um velho passevite, rodelas de madeira e vários detritos. Retiradas das paredes pela sua sobrinha, retratos e quadros de temática religiosa.

No dia seguinte, 6 de Outubro de 1997, encontrámo-nos com o sobrinho, que se manifestou arrependido de ter queimado a velha banca de madeira do tio: Já estava muito velha e eu não sabia que um dia alguém se viria a interessar por ela..., esclareceu visivelmente entristecido. Para logo mais acrescentar: Mas olhe que guardei a peça onde ele costumava aquecer as madeiras, os ganchos e os grampos... E logo mais os exibiu, carregados de ferrugem. Rogámos-lhe que os guardasse, para mais tarde serem fotografados e expostos. Prometeu que assim faria.

Curiosa a peça de aquecimento das madeiras: ovalada e tubular, com aberturas superior e inferior. Os ganchos e os grampos fixavam-se à madeira contra este miniforno, em cujo interior a combustão libertava o calor necessário para dar forma às madeiras destinadas às ilhargas. Pela sua estrutura tudo indica ter sido concebida pelo próprio violeiro, Justino Couto, violeiro do Corvo e violeiro da Sé do Porto...

Armando Leça, o prestigiado músico-caminheiro das nossas mais expressivas tradições musicais, forneceu-nos preciosas informações, nomeadamente através de um texto intitulado "Violeiros da Sé" (publicado in "O Tripeiro", Ano XIII, 1957), graças ao qual é possível enquadrar a arte e o engenho de Justino Couto num contexto regional de fabrico e de construção de cordofones.

A tradição do fabrico foi referenciada, em finais do século XVIII, por António da Silva Leite, o qual não tinha quaisquer dúvidas quanto à excelência das guitarras produzidas no Porto por Luís Cardoso Sevilhano. Excelência esta garantida e assegurada, em termos de continuidade por José Ferreira Sanhudo e António Ferreira Sanhudo — os famosos Sanhudos da Bainharia, que Armando Leça refere como artesãos que trabalhavam, sentados no banco, à porta caseira, como ainda hoje se vêem os torneiros (1957), cujos cordofones teriam sido construídos sob a orientação do compositor Sá de Noronha, pelo menos a fazer-se fé nas informações de Michel Angelo Lambertini.

Ainda de acordo com Armando Leça, durante o século XVIII registou-se, no Porto, o seguinte movimento de violeiros:
a) inícios do século XVIII: Luís Cardoso Sevilhano;
b) 1851: António Joaquim Sanhudo, artista de rabeca, violoncelo, contrabasso e violão francês, de tripa e arco, com exposição industrial no número cento e cinquenta da Rua da Bainharia;
c) 1861: José Joaquim da Fonseca, referenciado como mestre violeiro da Bainharia, que se anunciou como tendo sido o responsável pela construção do órgão da Santa Casa da Misericórdia de Monção;
d) 1862: registava-se a existência de dez violeiros locais;
e) 1864: nas páginas do "Almanaque do Porto" surgem referenciados oito violeiros;
f) 1870: quatro violeiros, um dos quais era um tal M. da Fonseca, que compunha violas e rabecas na Rua da Ponte Nova, próxima de uma esquina da Rua da Bainharia;
g) 1882: registava-se a existência de oito violeiros;
h) 1896: apenas referenciada a existência de três violeiros;
i) 1899: segundo Armando Leça, restavam dois violeiros — O Duarte e o Melo.

Justino Couto, iniciado nas lides do trabalho com as madeiras como "moço de carpinteiro", progrediu na profissão — sempre exercida nos tempos livres deixados pela lavoura — até que, depois da II Guerra Mundial, a oficina foi transferida para o Porto, cessando a respectiva actividade em Arcozelo. Justino Couto ficou a trabalhar na lavoura e, montando banca na sua cozinha, foi-se dedicando ao fabrico de cordofones para satisfazer encomendas formuladas pela Casa Duarte e de um ou outro cliente directo.

Justino Couto nasceu em 1909 e a partir de 1956 passou a residir no número 204 da Travessa de Vila Chã, no lugar do Corvo, freguesia de S. Miguel de Arcozelo, do concelho de Vila Nova de Gaia.
A sua casa ficava a escassas dezenas de metros do início da actual Rua da Pedreirinha, na qual se situavam as oficinas dos violeiros (das quais desapareceu todo e qualquer indício). Segundo informações de Joaquim Fernandes — o fiel depositário de formas, moldes e ferramentas do violeiro Justino Couto — esta Rua da Pedreirinha foi outrora conhecida pela designação de Rua dos Violeiros, em virtude de na qual terem residiu e trabalhado vários construtores dos referidos cordofones.

Dos antecedentes profissionais de Justino Couto pouco se sabe, apesar de se registar o facto de seu pai ter sido um carpinteiro (segundo consta teria sido mesmo um homem rico e de posses, mas teria desbaratado a sua fortuna com certos "devaneios mundanos"). De referir que as profissões de carpinteiro e de marceneiro eram, na região, profissões tidas como muito respeitadas, sobretudo devido à qualidade dos seus trabalhos.

Não terá sido, portanto, por acaso que António Duarte, regressando do Brasil, decidiu fixar--se no Corvo para aí fundar a sua oficina de violeiros. Na qual trabalhou regularmente Joaquim Couto, irmão mais velho de Justino Couto. Este, por sua vez, foi aí que aprendeu as principais técnicas e segredos da arte.

Dificuldades de natureza financeira levariam a oficina de violeiros à falência e Justino Couto passou a trabalhar numa quinta vizinha e, em casa, nas suas horas livres, fabricava instrumentos, sobretudo destinados à Casa Duarte. Ao que parece, as dificuldades da oficina de violeiros terão surgido com o advento da II Guerra Mundial. No entanto, a Casa António Duarte & Sucrs, sediada na Rua Mouzinho da Silveira, deverá ter possuído outras oficinas na cidade do Porto, nas quais terá eventualmente trabalhado Justino Couto.

Com a saúde francamente debilitada, Justino Couto encontrava-se em Outubro de 1996, na enfermaria do Asilo Salvador Brandão, em Gulpilhares, freguesia do concelho de Vila Nova de Gaia. Foi Joaquim Fernandes quem introduziu a conversa com um homem cuja expressão facial era de surpresa e de reserva. Mas quando ouviu pronunciada a palavra "violeiro", abriu-se no seu rosto um sorriso largo, num misto de satisfação e de saudade, com um brilho lacrimosos nos olhos cansados da vida.

Era como se de repente um novo alento o arrancasse às dores do leito (segundo nos confidenciou uma sobrinha, teria uma chaga dolorosa na altura em que o visitamos), onde se encontra por força de duas quedas graves. As dificuldades em erguer a cabeça foram evidentes e a conversa decorreu penosa e inconsequente. Teve notórias dificuldades em ordenar as brevíssimas respostas às nossas perguntas, questões muito simples para início de conversa. E ficou desde logo muito claro que quem melhor falaria de Justino Couto seriam os moldes, as formas e as ferramentas que utilizou e, em última análise, os instrumentos saídos das suas mãos. Estes, sim, a mais autêntica e verdadeira memória do violeiro Justino Couto.”

MÁRIO CORREIA
2001

Com os meus agradecimentos ao Mário Correia por me facultar uma cópia do trabalho sobre este violeiro da nossa terra, por ele feito em 2001, aquando de uma exposição “Instrumentos tradicionais da Galiza e Norte de Portugal”, realizada no Ateneu Comercial do Porto.

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