13 julho 2016

Contra Mersault

Mersault é o protagonista de “O Estrangeiro” de Albert Camus, talvez a obra mais famosa de um dois maiores escritores de língua francesa do século XX e uma referência fundamental na literatura do existencialismo. O enredo desenrola-se na Argélia Francesa onde Mersault mata um árabe numa praia, sem razão e sem saber bem porquê, dentro do tom do “absurdo da existência”, característico daquela corrente filosófica e literária. Na história, Mersault é julgado e condenado. Do árabe, morto gratuitamente nada se sabe, nem sequer o seu nome. Para uns isto é uma forma de racismo, para outros, eu modestamente incluído, faz parte de uma certa perspetiva niilista da história.

Kamel Douad, escritor argelino, publicou recentemente um romance que teve algum sucesso: “Mersault – Contra inquérito”. O seu personagem é o irmão do árabe desaparecido da vida, dos registos e mesmo ausente do cemitério, por supostamente o cadáver se ter volatilizado. Viaja entre a denúncia da indiferença do colonizador e a desgraça e angústia da família indígena. A injustiça é ainda mais gritante porque o tipo que lhe matou o irmão, publicou um livro sobre o assunto e ficou famoso, numa fusão de autor (Camus) e Mersault (personagem). Nos calores dos dias da independência, o novo protagonista mata um francês, também por nada, mas o autor de agora tem o cuidado de lhe dar um nome completo (o próprio e o de família). O protagonista é preso brevemente, não pelo crime, mas apenas por não ter participado na luta independentista. A trama é relatada numa mesa de café, que cheira muito a outro grande romance de Camus, “A Queda”.

O livro incomodou-me um pouco por estar apoiado numa correspondência algo grosseira e nalguns aspetos forçada. Só não sei se Kamel Doaud é mesmo fino a ponto de o paralelo abusivo, ser propositadamente assim. No mínimo, o livro tem duas perspetivas de leitura. Num ponto de vista simples e direto, prima a solidariedade terceiro-mundista com o “outro” ignorado e menosprezado. Em alternativa, podemos ver friamente encenada e destacada uma ironia triste sobre a falta de objetividade e de rigor, e consequente amálgama de razões e suposições, que muitas vezes por ali se vive.

Da desgraça de um mal inicial, um crime gratuito e brutal, partimos para uma cobrança desajeitada, com uma argumentação baralhada e fantasiada, não menos brutal e completamente injustiçada. Este défice de discernimento, acaba por constituir uma desgraça maior do que aquela que pretendia corrigir. Será esta uma mensagem sub-reptícia de Kamel Daoud ou serei eu a fantasiar em excesso? Gostaria de saber como o júri que premiou o romance o leu, sendo certo que um bom livro é aquele que pode ser lido de várias formas.

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