31 março 2018

Viver de pé


E eis que nos escondemos, quando o vento se levanta, por medo que nos empurre para batalhas duras
E eis que nos escondemos em cada amor nascente, que nos diz depois do outro, eu sou a certeza
E eis que nos escondemos, que a nossa sombra, por um momento, para melhor fugir da inquietação, seja a sombra de uma criança, a sombra dos hábitos que plantamos em nós, quando tínhamos vinte anos
Será impossível viver de pé?

E eis que nos ajoelhamos de estar meio tombados sob o incrível peso das nossas cruzes ilusórias
E eis que nos ajoelhamos e já recaídos por ter sido grande o espaço de um espelho
E eis que nos ajoelhamos enquanto a nossa esperança se limita a rezar, quando é demasiado tarde e já não podemos ganhar todos os encontros falhados
Será impossível viver de pé?

E eis que nos deitamos pelo mais pequeno amor, pela mais pequena flor a quem dizemos sempre.
E eis que nos deitamos para melhor perder a cabeça, para melhor matar o tédio dos reflexos de amor
E eis que nos deitamos do desejo parado, de prolongar o dia, para melhor cortejar a morte que se prepara para ser até o fim a nossa própria derrota
Será impossível viver de pé?

Tradução livre de “Vivre Debut” de Jacques Brel.

29 março 2018

O BES que era bom


Quando em agosto de 2014 o BES de então foi “resolvido”, o a seguir denominado “Novo Banco” seria supostamente a parte boa e enxuta da instituição. Os buracos e as desgraças teriam ficado na parte má. Evidentemente que não era expetável um mar de rosas para os primeiros tempos de um banco novo, a começar naqueles auspícios, por muito sãozinnho que fosse suposto ser o seu balanço inicial. 


Três anos e sete meses depois do “dia D” estar ainda a registar mais dois mil milhões de buraco, imparidades, malparado, em Portugal ou nas Arábias, custa-me muito a entender. 



A recapitalização pelo fundo de resolução de 4,3 mil milhões, está dada como perdida. Com este novo buraco vão ser necessários mais 800 milhões dos quais 450 empresta(da)dos pelo Estado. Certamente que esperamos que o Estado recupere estes e o empréstimo inicial. Ao fim e ao cabo, a “coisa” foi apresentada como “sem custos para o contribuinte”. 



Presumo que o fundamental destes dois mil milhões condenados já lá estaria em 2014, não creio terem sido fruto da nova gestão, destes últimos anos. Se lá estavam, como demorou tanto tempo a serem identificados e assumidos? Estavam assim tão bem escondidos? Ou, até agora, assumia-se algum otimismo na avaliação e o novo dono resolveu ser especialmente pessimista? 



Será coincidência este enorme buraco ser revelado neste momento, quando ainda pode ser imputado e assumido pelo passado? E, já agora, são mesmos os últimos “miles” milhões…?

27 março 2018

Tão longe e tão perto


Vi recentemente dois filmes que partilham o mesmo tema e o mesmo tempo, exatamente ao dia: “Dunquerque” e “A Hora Mais Negra”. Ambos sobre o resgate de França das tropas inglesas em maio/junho de 1940, após a estrondosa derrota relâmpago sofrida na fase inicial da II Guerra.

“Dunquerque” pode ser “mais um” filme de guerra, mas é mais um filme de gente desesperada a morrer e a ver morrer, do que de heróis gloriosos. Não foi há muito tempo que na Europa se matava assim cruelmente, nem sei se é possível falar em mortes não cruéis numa guerra, e se aquele contexto hoje nos parece longínquo e inverosímil para os tempos que correm, nunca facilitando. Será que esta Europa entendeu definitivamente que uma barbaridade assim nunca mais…? Diremos que sim, mas continuam a fabricar-se e a posicionar-se armas e a Ucrânia é ali ao lado. Podemos ver um filme assim e imaginar que é mesmo a sério, connosco e com os nossos próximos?

Voltando a 1940, enquanto nas praias e nos mares decorre a chacina, no outro lado do canal, em Westminster há jogadas e conspirações de poder. Tão perto e tão longe. Neville Chambarlain, o demitido “primeiro ministro da paz”, continua a defender uma estratégia de “apaziguamento em apaziguamento, até a derrota final”, depois de a tolerância por ele oferecida Hitler em Munique, em 1938 ter apenas garantido um início de guerra mais favorável à Alemanha.

Com razão ou sem razão, essa postura frouxa não deixa de me fazer lembrar o uma vez mais sinuoso Mr Corbyn, relativamente ao caso do envenenamento do ex-espião russo. Não quero com isto dizer que o oposto do frouxo é a guerra; o oposto da fraqueza é a firmeza. Parece estarmos agora a assistir a alguma firmeza na Europa, apesar dos protestos de alguns sempiternos “bem-intencionados”. Gostei particularmente de ouvir o nosso Ministro dizer esperar por explicações cabais das autoridades russas. Esperemos que a cadeira seja confortável.

A propósito de falta de firmeza, lembrei-me ainda da questão da pressão do islão político e social na Europa. Não estou a falar na dimensão espiritual dessa religião nem dos atentados. Estou a falar na tentativa de islamização da sociedade, mesmo… Tudo isto são coisas demasiadas díspares e afastadas? Talvez não, talvez não…!

26 março 2018

Mortes (in)evitáveis


A morte é inevitável. É aquela certeza que resiste a todas as modas, escola ou escolhas. O momento pode não o ser. Quando alguém é morto, antes do tempo, por acidente ou crime, para lá de culpar a falta de sorte ou condenar o assassino, há uma certa resignação à fatalidade. Na maior parte das vezes o morto é elemento passivo na história, naquele momento.

Sente-se algo de diferente com a morte do polícia francês na tomada de reféns recente em Trèbes, Arnaud Beltrme. Ele morreu por ter intervindo ativa e voluntariamente. Certo que ser polícia implica correr riscos e muitas vezes de vida, mas ninguém é pago para morrer.

A sua morte, depois de se ter oferecido para substituir uma das reféns, foi consequência de uma opção sua, profissional, mas altruísta, de uma enorme grandeza. Ter sido estupidamente assassinado por um alucinado, um de vários milhares que por aí existem, impressiona. Impressiona pelas circunstâncias da perda e pela dimensão potencial de replicação do fenómeno.

Entretanto, imagino que, pelo menos desta vez, não haverá uns “idiotas úteis/perigosos inúteis” que virão relativizar e tecer considerações sobre responsabilidades compartidas!


Foto AFP

24 março 2018

Caminhar, muito


Coisa bonita um sorriso e, muito mais do que bonita, preciosa. Preciosa para guardar e bem cuidar. A resguardar e acarinhar muito, muito, o maior, o herdado da infância, dos dias das mil e uma expetativas, de quando o tempo tinha tudo por estrear.

Sim, são bonitos os sorrisos, mesmo quando são tristes. Não é incompatível. Muito pior será um sorriso banal, de quem lhe perdeu a força ou ignora o jeito. Um sorriso triste é uma promessa, um saber, um acreditar.

Não é mau estar triste. Melhor triste por faltar algo, e isso encarar, do que satisfeito com algum tão pouco. Tão pouco deve incomodar um tão pouco à nossa volta. Nada trava, nada afeta. Caminhar muito, sempre muito. Nalguma esquina estará uma mão pronta a num corpo desaguar.

Um dia, por um dia, por um mês, um ano ou um resto de vida, haverá uma mão na outra. Restaurado o sorriso guardado, cuidadosamente, não estragado, não banalizado. Até lá, não desistir, caminhar, muito, o que for preciso caminhar. De vez em quando, fugazmente, arriscar. Tentar, praticar, cuidar.

Até esse dia, ser feliz, mesmo estando triste. Feliz por caminhar, muito, sempre muito, de mão aberta e peito disposto a abraçar. Pelo caminho, não pedir contas ao mar. E crer, num dia, num sorriso par.

22 março 2018

Não há almoços grátis


O pessoal habituou-se a que, quando se senta em frente a um computador, tudo é gratuito, excetuando, eventualmente, a mensalidade da ligação à net. Corrigindo, já não é apenas sentando, será também caminhando com o telefone na mão e com a proliferação das redes wifi gratuitas já nem sequer a assinatura é indispensável.

Como o que está por trás da nossa navegação, redes, servidores, infraestruturas em geral, produção de conteúdos, etc. tem custos e a filantropia tem limites, fica uma conta por pagar. Não sendo eu especialista do tema, nem dispondo de dados detalhados, parece óbvio ser a publicidade quem gera as receitas que alimentam a nossa gratuitidade.

O problema começa quando o vendedor de frigoríficos não quer gastar dinheiro a promove-los junto de esquimós e o do verniz para as unhas não ganha nada em mostrar-me os seus produtos. Entramos no campo da publicidade dirigida e seletiva. Para isso é necessário conhecer as pessoas, os seus hábitos, preferências e sensibilidades.

Neste campo trava-se uma batalha feroz entre a proteção dos dados pessoais e o querer saber “tudo” sobre cada um. Cada vez mais, em cada página que visitamos, em cada notícia que lemos e até em cada local físico por onde passamos, em cada nosso passo soft ou hard, há um registo desse passo, que vai desenhando o nosso perfil e permitir sermos alvejados de forma mais eficaz por quem paga a conta da nossa navegação e gera os lucros correspondentes. Cada vez que nos propõe partilhar ou aceder a informação para “melhorar a nossa experiência”, não se iludam…

Por estes dias, o Facebook está numa tormenta porque “disponibilizou” dados de alguém, muitos alguéns, supostamente para “estudos”, mas que serviram para vender um candidato numas eleições. Não se iludam… O problema não é exclusivo Facebook. Por muita configuração que façamos nas nossas contas, querendo, eles saberão sempre tudo. E depois de vender a informação dificilmente se garante que ela não seja “reutilizada” para outros fins. Não importa se serviu para vender verniz das unhas ou um presidente, nem a cor política do mesmo.

Curiosamente, por um lado, a proteção da privacidade entrava e limita a colocação de câmaras de segurança no espaço público e, por outro lado, sem o sabermos claramente, há um brutal “big brother” a anotar o que fazemos e a comercializar essa informação. Será assim tão diferente a gravação da imagem dos sítios por onde passei fisicamente do registo informático dos sites por onde andei? Não, não é, e a instalação de camaras de segurança tem até uma motivação social, não comercial.

Entretanto, o pessoal continuará a preferir almoços grátis.

21 março 2018

E depois…


O que está a acontecer com N. Sarkosy, ex-Presidente francês, detido para interrogatório, já se estava a desenhar no horizonte há uns tempos. Como dizem por lá “On le voyait venir…” Tem aspetos positivos, porque, pior do que existir crime, é existirem intocáveis. Em muitos países com responsabilidades importantes no concerto das nações, isto nunca aconteceria. Até poderia ser bastante pouco saudável para jornalistas ou magistrados avançarem com investigações nestes campos.

Apesar da presunção de inocência e de o que se poderá formalmente provar ou não, a Justiça Francesa não terá chegado aqui com muitas dúvidas. Este prostituído … empochou (até com um toque de francês na origem da palavra) uns 50 milhões do Khadafi para a sua campanha eleitoral. É grave e especialmente chocante, se pensarmos no perfil do patrocinador, mesmo não sendo tão diabólico como na altura nos foi vendido.

Depois disso, Sarkosy foi “convencido” pelo Qatar a desencadear uma guerra para depor o seu antigo patrocinador. Que motivação terá existido? Será que, eventualmente, algum dia, um juiz lá chegará? Para lá de procurar impor um regime islâmico mais próximo da sua influência, terá sido relevante o facto de o país do Golfo possuir uns bons depósitos líbios nos seus bancos, que, entretanto, ficaram sem dono para os reclamar…?

A Líbia, depois de ser salva do seu ditador, por estes altamente motivados intervenientes, tornou-se o caos que todos conhecemos e não sabemos como ou quando um dia normalizará.

E, depois, o populismo é um problema.


Foto: Patrick Kovarik/AFP 

17 março 2018

Um caso de amor


Tenho uma pequena dúzia de autores com quem criei um relacionamento forte. Na prática, depois de ler um ou dois livros, dá-me vontade de ir atrás de tudo o que escreveram. John Steinbeck é um deles. Mais o do “A Leste do Paraíso”, “A um Deus Desconhecido”, “Pastagens do Céu” e menos o de “As Vinhas da Ira” ou “O Milagre de S Francisco”.

Depois de uma dúzia e meia de títulos do mestre alinhados na estante, aparece-me recentemente, por acaso, este desconhecido, aqui na imagem. É uma história simples, uma sinopse da mesma pouco diria, mas, muitas vezes, são as melhores.

A força da caraterização dos personagens, a riqueza com que pequenos detalhes deliciosamente os pintam, fazem a magia de um quadro da natureza humana. Porque a riqueza e complexidade da mesma não existe apenas nas situações ultradramáticas ou heroicas. A beleza e a subtileza da condição humana estão muitas vezes apenas no quotidiano e no banal. Nem toda a gente passa por episódios extremos, a maior parte certamente não, e não é por isso que deixam de ser interessantes e emocionalmente ricas.

Considero que as melhores histórias são precisamente estas. Onde não existe uma saga, uns doze trabalhos de Hércules ou uma desgraça de fazer chorar as pedras do caminho. São apenas aquelas em que simplesmente há gente, gente variada, sem heroísmo nem maquiavelismo, simplesmente olhando para a sua vida e a dos outros e … andando.

Estas são também as mais difíceis de escrever, não estão ao alcance de qualquer um. Precisamente por isso, não há muitos “Steinbecks”.

16 março 2018

Coisas proibidas


Um destes dias revi um filme “proibido”. Lolita. Não a versão do Kubrick, mas a do Adrian Lyne. Digo proibido porque os mesmos vigilantes que exigem a retirada de obras de arte de museus, supostamente imorais, certamente condenariam a exibição pública deste filme. Sei que estou a entrar em terreno minado, um pé um pouco ao lado no caminho pode dar grande confusão e mesmo uma palavra escrita para cima, pode ser lida para baixo. 

Arriscando… o filme é um bom filme, na minha modesta opinião, tecnicamente muito bem feito. Chocará certamente, mas não é de forma nenhuma uma apologia da pedofilia, nem sequer a trata com ligeireza ou a procura banalizar.

Voltando aos censores. Como definir o âmbito e os limites do moralmente correto e aceitável de passar num écran ou de se mostrar num museu. Por exemplo, há uma temática, largamente difundida, aparentemente considerada “normal!”, mas que me choca profundamente, que é a violência. Não a violência do Tom and Jerry ou do Astérix entre os Romanos. Estas estão claramente no domínio do fantástico. Refiro-me à violência urbana, brutal, quase gratuita.

A facilidade com que se vê gente, mesmo o herói “bom”, a espancar e a matar gente tem adjacente uma desvalorização da integridade física e da vida humana que, no mínimo, deveriam levantar questões. Se acharmos ser inaceitável exibir um “Lolita”, que dizer de um “Kill Bill”, sendo que existem coisas muito mais violentas do que o “Kill Bill” a circular nas tardes de domingo?

Deixando de lado estas considerações sobre a bondade ou malvadez do conteúdo, um filme, uma forma de expressão criativa, tem que ser obrigatoriamente correta, moralmente correta? E valorizar uma criação “incorreta” é do domínio da perversão? E a sua divulgação é perniciosa para a sociedade e os bons costumes?

Depende fortemente da maturidade do recetor, sendo que assumir uma menoridade generalizada dos mesmos, não resolve grande coisa.

Ficamos sem conclusões…

13 março 2018

Quando menos é mais


Por estes dias, tenho-me entretido a editar fortemente algumas fotos, com resultados como o do exemplo aqui publicado. De forma simplificada, retirei a cor, contraste e detalhe e puxei a exposição ao que achei ser o máximo possível antes de estourar, eliminando zonas escuras.

Objetivamente, a fotografia fica com menos conteúdo, perdeu cor, perdeu nitidez e a amplitude de tons ficou esmagada. Mais pobre, por isso? Não necessariamente, mesmo com a devida ressalva do “gostos não se discutem”, ficou mais bonita, sendo que um mérito fundamental está na origem, neste caso na Jennifer.

Quando pensei neste texto, inicialmente apareceu-me a palavra “desconstrução”, mas recusei-a. Tenho-lhe alguma alergia. Evoca-me quem nunca construiu, não imagina bem o que isso seja, acha que está mal e tem muito gozo em desconstruir, sem ter grandes ideias de como depois fazer algo de novo. Valorizo mais o (re)construir e o evoluir.

Ficou então a frase que dá o título lá em cima: “Quando menos é mais”. Noutro campo, no das palavras, rever e melhorar é para mim sinónimo de reduzir e simplificar; cortar e apurar. No caso desta e das outras fotografias revisitadas, diria, de forma grosseira, que uma máquina com metade da resolução e com uma lente mais básica conseguiriam o mesmo resultado. Coisas a tomar em consideração antes de dar prioridade a ligar complicómetros e achar que tudo se resolve complexificando e sosfisticando.

10 março 2018

Reino Unido – País perigoso


Em 2006 Alexander Litvinenko, um ex agente do FSB foi envenenado em Londres por uma substancia radioativa, polónio, coisa que não se arranja nem se produz numa garagem qualquer, mas que, felizmente, deixa rastos.

Andrey Lugovoy, um dos dois agentes russos com que Litvinenko tomou um cházinho no dia em que foi envenenado, foi acusado pela polícia britânica, mas está tranquilamente como deputado na Duma, parlamento Russo. Até foi condecorado por Putin e tudo. Um herói! Outras mortes suspeitas de desertores russos ocorreram por aquelas paragens, apenas menos espetaculares.

No passado dia 4 de março, um ex-espião russo, Sergei Skripal, e a filha foram intoxicados por um gás de nervos em Salsbury, no Reino Unido e permancem em estado crítico. Há 21 pessoas que necessitaram de tratamento e um policia, dos que interveio inicialmente, está seriamente contaminado. Obviamente que a Rússia nega qualquer responsabilidade. Pelo sim, pelo não, sarcasticamente (ou sinistramente) a TV estatal russa ironiza e avisa os traidores para não se estabelecerem no UK, dado que aí correrem muitos perigos! Isto nem é humor negro, e um buraco negro de decência.

De passagem, recomendo a leitura do livro sobre o caso Livensko, escrito pela sua companheira e por um amigo próximo. Aparentemente é ainda bastante atual para entender uma mentalidade rufia que se poder resolver um assunto à porrada, não hesita e recorrendo a qualquer meio. Usar uma arma química num meio urbano na Europa não lembra ao diabo.

07 março 2018

Roubo, mas faço…


É uma a frase pragmática que relativiza e até reconhece algum mérito aos políticos corruptos, que supostamente beneficiarão mais a sociedade do que os outros que não roubam, mas pouco fazem. Para lá de haver mais opções além destas duas, o (de)mérito da corrupção está bem espelhado nos resultados da ultima lista ordenada da corrupção percecionada no setor público de 180 países do mundo, publicada recentemente pela “Transparency International”, aqui.

Certamente que estas ordenações nunca serão ciência exata, seja pela avaliação, seja pelos critérios de ponderação, mas, para lá das décimas e de 3 ou 4 lugares para cima ou para baixo, vejamos os 10 primeiros e os 10 últimos.

  • Nova Zelândia, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Suíça, Singapura, Suécia, Canadá, Luxemburgo e Holanda. 
Contra:
  • Somália, Sudão do Sul, Síria, Afeganistão, Iémen, Sudão, Líbia, Coreia do Norte, Guiné Bissau e Guiné Equatorial. 

Poderíamos eventualmente excluir os países em guerra, Síria, Iémen e os dois Sudões, situações excecionais, mas que também não desculpam tudo, e acrescentando em substituição: Venezuela, Iraque, Turquemenistão e Angola.

Pensemos agora em como é viver em cada um desses dois grupos de países… Aparentemente, os locais onde mais se rouba, não serão bons exemplos. Nada de muito surpreendente se pensarmos no efetivo significado da palavra roubar e que a corrupção não é apenas dinheiro e outros bens materiais desviados: é também a destruição de um sistema de valores são, alicerce de qualquer prosperidade.

05 março 2018

Coisas (meias) secretas


Quem não deve, não teme e quem não teme não se esconde. Esta reflexão vem a propósito das chamadas sociedades secretas, que não se sabe bem, mesmo bem, quais as suas atividades, métodos e objetivos, mas que existem e englobam gente relevante na gestão da coisa pública.

Num contexto como o da guerra civil espanhola, quando não há Estado de Direito e se prende e fuzila com bastante facilidade, compreende-se existir “temor” e, assim, os afiliados em grupos expostos, esconderem-se por proteção. Hoje, pelos menos no nosso país, ninguém é fuzilado, nem sequer perseguido pelos seus ideais. Dificilmente se entende a necessidade de esconder a pertença a uma tendência ou organização.

Estando em causa gente que participa e influencia a coisa pública não são aceitáveis filiações ocultas a organizações pouco transparentes. Deveria fazer parte obrigatória da declaração de interesses a pertença a uma sociedade que envolve hierarquia e obediências. Não posso aceitar ter um representante ou um governante secretamente afiliado a um grupo de interesses. Mesmo que o individuo assuma a filiação, continua a existir um problema quando os interesses defendidos por esse grupo não são transparentemente assumidos.

Como quem pode legislar sobre o assunto tem, provavelmente,… outros interesses…

02 março 2018

Entre assédio e sedução

Não tinha planeado voltar a este assunto tão cedo, mas o que é importante, é prioritário. Começando como acabarei: os abusos de poder são condenáveis e degradantes da condição humana, independentemente da origem e destino, mas recuso-me a ver aqui uma coisa típica e generalizada de homens contra mulheres.

É sobretudo a generalização que me irrita, na medida em que a banalização retira importância ao que realmente é importante. Custa-me a acreditar nas estatísticas de que “todas” as mulheres já sofreram assédio, uma em cada duas ou três, agressão, donde que um em cada dois ou três homens são agressores efetivos… !?

Sendo consensual que assédio é condenável e tentativa de sedução não, há aqui potencialmente um desalinhamento quanto à interpretação destes conceitos. Questões culturais! Num metro de Londres pode ser ofensivo fixar olhos nos olhos, numa rua do Cairo há quem ache normal agarrar a nádega da mulher que passa sozinha na rua.

Como estas coisas das diferenças culturais não são sempre fáceis de identificar, ainda por cima em sociedades cada vez mais multiculturais, acho que de devia criar um código, não necessariamente com identificação na lapela, que definisse essa fronteira para cada um(a). Haveria pessoas para quem um olhar de mais de dois segundos de duração é intolerável, outras para quem olhar, sorrir e chamar bonita será aceitável e até simpático.

Para concluir: abusos de poder são degradantes da condição humana, independentemente da origem e destino. Historica e estatisticamente as mulheres sofreram mais, sim. No entanto, sem rigor e seriedade, não se corrige, pelo contrário: desvaloriza-se ao equiparar coisas que não são comparáveis.

01 março 2018

Os “Irmãos”


Se houvesse um programa obrigatório para quem pretendesse falar publicamente sobre a questão do Islão político e do que ele arrasta, este livro deveria constar do mesmo. Um registo claro, objetivo e elucidativo, apesar dum toque de emoção excessiva no tratamento dos tempos mais recentes do Egito, pós 2011, as tais primaveras que toda a gente imagina conhecer com mais ou menos lirismo, com mais ou menos “conspiracionismo”. O problema está em que nestas e em muitas coisas raramente a realidade coincide com aquilo que a ignorância imagina.

É de uma simplificação enorme resumir as tensões no último século no Médio Oriente a uma história entre árabes, supostamente culturalmente homogéneos e alinhados, como Nasser gostaria, e intervencionismo desestabilizador localmente instalado, Israel, ou de braço longo, o ocidente colonizador que nunca desiste de interferir. Ao longo de todo este percurso, de alianças feitas e desfeitas, assumidas ou dissimuladas, eles estão lá, sempre à espreita, sempre ativos, sem desarmarem nunca: a Irmandade Muçulmana.

Nascida no trauma pós queda do império Otomano, advogando um regresso à “pureza original”, o salafismo, invocando um modelo de organização de sociedade fechado e anacrónico, negando toda e qualquer evolução, já está tudo escrito no livro, a Irmandade é um projeto sem futuro racional. A realização da Oumma, a grande comunidade muçulmana, o califado, de governo único, sem países, é também tão viável quanto a terra vir a ser plana. No entanto, cem anos depois, estão vivos e ativos, adaptando-se continuamento ao contexto. Se os petrodólares apoiaram, se as desilusões pós-independências ajudaram, há mais do que isso. Há uma mensagem que encontra aderência nas populações, década após década.

A herança não é bonita. O discurso hegemónico e intolerante fez muitos estragos, desde os simples crimes contra a comunidade copta no Egito, à inspiração dos movimentos jihadistas, até à preocupante reversão do sistema politico nalguns países, incluindo a Turquia. Sim, o Sr. Erdogan é da “família”.

Curiosamente se a religião é fácil e frequentemente manipulada como ferramenta de acesso e consolidação do poder, esta missão dos “irmãos” viveu e sobreviveu décadas sem atingir esse objetivo, excluindo os casos “especiais” do Sudão e da faixa de Gaza. As suas experiências de poder democrático, pós primaveras, foram tudo menos consolidadas, especialmente nos casos mais emblemáticos da Tunísia e do Egito. Por falta de jeito, de quadros, ou deficiência de princípios e sistema, não souberam governar, mesmo. O que acontecerá a seguir na Turquia é hoje a grande questão.